IFSC em 23/07/2015
Energia Nuclear
O primeiro reator nuclear multipropósito brasileiro de grande porte, que garante a independência nuclear do país, já estava previsto como uma das metas do Plano de Ação do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (PACTI/MCT) no ano de 2007. Agora, cinco anos depois, começa finalmente a sair do papel. Com um orçamento que beira os R$ 900 milhões, o equipamento tem a finalidade de diminuir nossa dependência externa no que diz respeito a insumos utilizados nos procedimentos de pesquisa com radiofármacos – um fármaco, produto biólogico ou droga que contém elemento radioativo empregado como agente diagnóstico ou no tratamento de enfermidades. Atualmente, são realizados cerca de 1,5 milhão de procedimentos por ano apenas no Brasil. Sem poder contar com a tecnologia brasileira, que dispõe apenas de alguns pequenos reatores de pesquisa ativos, o gasto com a importação de radioisótopos, elementos ativos dos radiofármacos, passa dos R$ 30 milhões anuais. Como referido no nome, o reator tem múltiplas finalidades que, além da medicina nuclear, que utiliza seus benefícios, por exemplo, no diagnóstico e tratamento de cânceres, as pesquisas podem ter aplicações em campos diversos como agricultura, energia, ciência dos materiais e meio ambiente, mas só com a produção de radioisótopos o Brasil conseguirá pagar o grande investimento em 20 anos*.
A previsão é de que o equipamento fique pronto em 2017, e que possa funcionar durante 50 anos. Com a autossuficiência do Brasil no setor, é possível que a quantidade de radiofármacos disponível no país dobre, e ainda vislumbra-se a possibilidade de exportar o material excedente, um mercado que hoje é dominado por países como o Canadá, França, Holanda e África do Sul. Para se ter ideia, nos anos de 2009 e 2010, os reatores canadenses e holandeses enfrentaram problemas que levaram a uma crise no abastecimento dos radioisótopos e causaram a suspensão de milhões de procedimentos ao redor do mundo.
Polêmica?
Os reatores nucleares são um assunto delicado, não apenas no Brasil, mas em todo o planeta, discussão fomentada por grandes acidentes nucleares que marcaram a história, como o caso de Chernobyl e o recente desastre em Fukushima. No entanto, a professora Yvonne Mascarenhas, do Grupo de Cristalografia do Instituto de Física de São Carlos e colega profissional de José Augusto Perrotta (o coordenador técnico do projeto na Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN), explica que não há razão alguma para alarde e preocupação. Segundo ela, há uma diferença essencial entre o tipo de reator que está sendo desenvolvido através deste projeto e os reatores utilizados nos grandes complexos de produção de energia nuclear que tanto amedrontam a população global. “Há dois tipos de reatores nucleares: o reator nuclear de pesquisa, que serve para entender as propriedades físicas e químicas de materiais, ou o reator nuclear de potência, que produz energia e a transforma em energia elétrica. O primeiro é menos potente, mas é muito mais preciso”, aponta a pesquisadora. O reator nuclear de pesquisa, ao contrário do reator de potência, que está interessado apenas no calor da reação nuclear para produzir energia, não produz energia alguma: pelo contrário, consome energia para produzir radioisótopos e nêutrons que, quando termalizados, entram em um comprimento de onda específico para aplicação em materiais de diversas procedências. “Por exemplo, na produção de raio-X, o reator produz radiação eletromagnética, que vai desde o infravermelho até o raio-X, depois você precisa selecionar qual é o comprimento de onda que você quer”, explica Yvonne.
Além disso, conforme informações de Perrotta para a agência de informações O Globo, os reatores de pesquisa utilizam apenas cerca de metade do urânio-235 contido no combustível que alimenta os reatores de potência das grandes usinas nucleares. A diferença é que o urânio dos reatores de pesquisa é mais enriquecido – 20% contra 4% das usinas –, o que permite o desenvolvimento de um reator mais compacto e oferece um fluxo de nêutrons muito maior, além de ficar muito abaixo do necessário para produzir uma bomba nuclear. E, para se ter ideia, este reator tem uma potência de apenas 20 megawatts, enquanto Angra 1 tem a capacidade de 657 megawatts elétricos e Angra 2, de 1350.
Funcionamento
Yvonne também aproveita para explicar, com mais detalhes, como funciona o reator na pesquisa básica. “Para entender a estrutura de materiais e cristais, é necessário utilizar o método de difração de nêutrons e de raios-X, que fornecerá dados para o cálculo da posição dos átomos dentro deste material ou cristal”, explica a pesquisadora. Este método consiste na reemissão da radiação recebida pelo átomo que, interagindo com a radiação emitida por outros átomos, são direcionadas para um único feixe de luz. Contudo, para caracterizar o material, a difração requer a aplicação dos feixes de nêutrons e de raios-X por um longo período de tempo, o que significa que o cientista só consegue enxergar uma estrutura estática, sem qualquer mudança durante aquele período. Isso ocorre porque o nêutron tem baixo nível de absorção pela matéria, então o rendimento da coleta de dados é baixo, porque ele passa através da matéria e poucos são difratados. “Mas quando você está lidando com uma fonte de alta intensidade, este tempo para coletar dados diminui e, eventualmente, durante uma reação química, aplicando a difração várias vezes entre poucos segundos, é possível verificar a progressão da mudança da estrutura”, esclarece. Para que isso aconteça, é necessária alta intensidade da radiação e uma reação química que não seja extraordinariamente rápida.
É com este fim que são desenvolvidos, em todo o mundo, fontes muito poderosas de raios-X, que são as radiações dos laboratórios Síncrotron, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), sediado em Campinas, ainda considerado limitado quando comparado a laboratórios de países como o Japão, EUA e Inglaterra, com muito mais energia e intensidade. “Aqui, ainda seria difícil fazer uma experiência em tempo real, observando a transformação do material”, comenta Yvonne, que tem uma interação de longa data com o LNLS. Ainda segundo ela, conhecer a estrutura cristalina é essencial para conhecer e manipular as propriedades de um material, sejam eles biológicos ou inorgânicos. “A necessidade de caracterização estrutural é muito grande, por isso a necessidade de grandes investimentos”, completa. No Brasil, há um reator de pesquisa voltado à produção de radioisótopos instalado no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), no campus da USP em São Paulo (que abriga dois dos quatro reatores de pesquisa do Brasil), com o qual Yvonne tem uma interação de trabalho, e já existe o projeto de um novo laboratório Síncrotron, que será muito mais potente e complementar ao laboratório de Campinas, mas o novo reator multipropósito suprirá uma demanda de pesquisa muito mais ampla e sustentará o Brasil na indústria nuclear por muitos anos à frente.
Além da aplicação na medicina, que salva milhares de vidas anualmente, o fluxo de nêutrons de alta intensidade advindo do funcionamento do novo reator multipropósito servirá para o teste de combustíveis e outros materiais utilizados na produção de energia e de propulsão, na tentativa de oferecer maior segurança eficiência para projetos como o complexo nuclear de Angra e o submarino nuclear brasileiro.
Um acordo com a Comissão Nacional de Energia Atômica da Argentina (CNEA), que também está trabalhando no desenvolvimento de um reator multipropósito, tem a intenção de baratear os custos dos projetos dos dois países. Além disso, a empresa responsável pelo projeto argentino também trabalhou na produção do reator australiano Opal que, em funcionamento desde 2007, hoje é um modelo mundial de confiabilidade na indústria nuclear. O Opal é a grande referência para a construção dos reatores brasileiro e argentino.
O desenvolvimento do projeto terá como sede a cidade de Iperó (SP), onde fica localizado o Centro Experimental de Aramar, da Marinha Brasileira, onde pesquisadores trabalham no protótipo do submarino nuclear brasileiro. O primeiro investimento já foi liberado pela Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) no valor de R$ 30 milhões e, neste ano, o governo federal pretende liberar mais R$ 32 milhões*. Todas os projetos nucleares do Brasil estão sob vigilância da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), e “têm finalidades muito específicas”, conforme conclui a pesquisadora do IFSC-USP.
* com informações de Cesar Baima, da agência O Globo
Assessoria de Comunicação