Revista Grandes Construções, 19 de fevereiro de 2015
Entrevista com o coordenador das obras do Projeto Sirius, engenheiro Oscar Vigna
Novo acelerador de elétrons brasileiro ocupará prédio extremamente sofisticado, com exigência de estabilidade mecânica e térmica sem precedentes na história da engenharia brasileira
Sirius é a estrela mais brilhante que pode ser observada no céu, em ambos os hemisférios,em magnitude aparentede -1,46. Ela pertence à constelação do Cão Maior e está localizada a uma distância de cerca de 8,6 anos-luz da terra, o que a torna uma das estrelas mais próximas de nós. É mais de 20 vezes mais brilhante que o Sol e duas vezes mais massiva que ele, e por isso surge no céu noturno como a mais brilhante.
Justamente por essa importância e magnitude, Sirius empresta seu nome àquele que está sendo considerado o maior projeto da história da ciência brasileira, até o momento. Trata-se da construção do novo acelerador de elétrons do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas (SP), cujas obras já foram iniciadas, a um custo estimado em R$ 650 milhões. A expectativa da comunidade científica em relação ao projeto é igualmente grande. A luz síncrotron é um tipo de radiação eletromagnética de amplo espectro, que abrange desde o infravermelho até os raios X. Ela é emitida por elétrons em velocidade próxima à da luz, quando sua trajetória é desviada por um campo magnético.
O acelerador funciona como um gigantesco microscópio, que os cientistas utilizam para enxergar a estrutura atômica e molecular de diferentes materiais, iluminando-os com os diferentes tipos de radiação presentes na luz síncrotron. Pode ser uma rocha, uma proteína, uma amostra de solo, um dente de dinossauro, um cabo de aço usado em plataformas de petróleo, um fio de cabelo, ou qualquer outra coisa que se queira conhecer nos mínimos detalhes.
Com a tecnologia, é possível entender materiais, tanto do ponto de vista estrutural quanto funcional. Com a luz sincrotron se investiga, por exemplo, que tipos de átomos e moléculas fazem parte de um material, qual é a distância entre eles, como eles interagem, quais são suas propriedades magnéticas e várias outras questões.Ela é usada em várias áreas de pesquisa, como física, química, biologia, geologia, nanotecnologia, engenharia de materiais e até paleontologia.
O acelerador será montado majoritariamente com tecnologia brasileira e instalado próximo ao atual equipamento brasileiro, o UVX, que entrou em operação em 1997, passando a atender a cerca de 1,4 mil pesquisadores por ano, com quase 3 mil trabalhos científicos. A LNLS promove pesquisa em física, biologia e nanotecnologia e desenvolve, desde a década de 90, projetos nas áreas de física, química, engenharia, meio ambiente e ciências da vida.
O Sírius será um acelerador de elétrons de quarta geração e um dos primeiros nesta classificação, no mundo. Quando pronto, produzirá luz de altíssimo brilho, cujo feixe será capaz de penetrar materiais densos, com impacto determinante para a nanotecnologia e biotecnologia. Igual a ele, somente o MAX IV, que está sendo construído na Suécia.
A luz é gerada pela aceleração de elétrons, que viajam dentro de um anel de 518 metros de comprimento (165 metros de diâmetro) a uma velocidade muito próxima à velocidade da luz, que é de aproximadamente 300 mil km/s. Nas tangentes ao anel estão localizadas as “linhas de luz”, que são as estações de trabalho nas quais os pesquisadores realizam seus experimentos com a luz que sai do anel. Várias linhas de luz funcionam simultaneamente, mas cada uma é otimizada para um tipo de pesquisa de acordo com a necessidade do experimento a ser realizado.
Para abrigar equipamento de tão elevado padrão de tecnologia, será construído um prédio extremamente sofisticado, com exigência de estabilidade mecânica e térmica sem precedentes na história da engenharia brasileira. Sem dúvida, do ponto de vista da construção civil, esse será um grande desafio.
Para falar sobre isso, Grandes Construções entrevistou o coordenador das obras do Sírius, engenheiro Oscar Vigna. Ele detalha o projeto, fala das suas dificuldades e o que ele representa, como sinal de maturidade da nossa Engenharia.
Este é um projeto modular, a ser desenvolvido em tapas. Nessa primeira serão 40 meses de construção. A LNLS considera o mês de setembro de 2017 como um marco para o Sírius, pois é quando ocorrerá a liberação para montagem do anel, após a conclusão do prédio. Todos os equipamentos que irão compor o Sírius estão sendo construídos em paralelo às obras. Em 2018 será inaugurado para testes.
Grandes Construções – Quais são as principais características do prédio que abrigará o Projeto Sirius e qual a complexidade dos desafios de engenharia envolvidos na sua construção?
Oscar Vigna – A finalidade do prédio é abrigar o que chamamos de fonte de luz sincreton, que é composta por um conjunto de três aceleradores de elétrons, dois dos quais com um formato circular, e o maior deles com 518 metros de circunferência. Ou seja, o elétron, para percorrer uma volta completa neste acelerador tem que percorrer uma distância de 518 metros. Tangenciais às curvas desses aceleradores serão instaladas o que chamamos de linhas de luz. É nesse sistema que produzimos a radiação síncrotron. Em linguagem bastante simplificada, o princípio de funcionamento é o seguinte: nós aceleramos os elétrons à velocidade da luz, em dois dos aceleradores, para produzir energia, que é recolhida no último deles, o maior, de 518 metros, que nós chamamos de anel de armazenamento de elétrons. Toda vez que esses elétrons são defletidos, eles produzem a radiação sincreton, que é uma onda eletromagnética que sai pela tangente de onde o eletron está fazendo a curva. Nessas tangentes são colocadas as linhas de luz, que capturam essa radiação, fazendo um tratamento ótico nelas, selecionando as frequências e os tamanhos que nós queremos. Essa radiação específica para cada linha é aplicada sobre uma amostra de matéria. E dessa interação entre a radiação e a matéria — isso é feito a partir de diversas técnicas — nós conseguimos fazer a exploração da estrutura da matéria.
GC – Um nível de tecnologia tão avançada exige instalações igualmente sofisticadas, não é?
Oscar Vigna – Exatamente! Para abrigar uma fonte dessas, com características de estabilidade dimensional muitograndes – porque estamos falando de focos de luz da ordem de nano metros,e isso aplicado a dezenas de centenas de metros de distância da fonte – você começa a pensar em aceleradores e linhas de luz em que a deformação de toda essa estrutura tem que ser controlada também na ordem de nano metros. E isso tem que estar dentro de um prédio, com características especiais para acondicionar toda essa parafernália.
GC – Nesse processo de produção da energia sincreton, qualquer vibração, por menor que seja, gera uma interferência gigantesca.
Oscar Vigna – Isso mesmo. Um dos aspectos críticos dessa edificação é a imunidade às vibrações. Sejam as vibrações produzidas pelo terreno, pelas ruas próximas, pelos vizinhos no entorno do prédio etc., que se propagam para dentro do prédio; sejam elas produzidas pela própria edificação que abrigará o laboratório; sejam pela rede de utilidades, como sistema de ar refrigerado, sistemas elétrico e hidráulico. Além disso, o prédio terá gente trabalhando lá dentro, caminhando. Vai ter toda a movimentação dos equipamentos, que estarão muito próximos aos locais aceleradores. Todas essas fontes de vibrações têm que ser neutralizadas, filtradas de tal maneira que se tenha uma estrutura bastante estável.
Outro aspecto importante envolvendo toda a estrutura predial é que os aceleradores exigem que as deformações relativas à sua sustentação sejam muito controladas.O piso sobre o qual eles serão colocados tem uma especificação que foi passada pelo pessoal de projeto. Nesta especificação está registrado que ele não pode deformar em mais de um quarto de milímetro a cada 10 metros, no espaço de um ano. Isso afeta bastante não só o piso industrial como também toda a construção.
GC –Por que essa especificação?
Oscar Vigna – Porque se há uma deformação maior do que essa, os equipamentos se desalinham de tal forma que teriam que exigir um realinhamento mecânico. E fazer o realinhamento mecânico de um acelerador de 500 metros exigiria um trabalho delicado de no mínimo um ou dois meses. Se o piso subisse por igual, não teria importância, mas isso não acontece.
Esse prédio do qual nós estamos falando tem o formato circular, com um furo no centro, lembrando o desenho de um donuts. A sala onde será instalado o acelerador terá um piso com diâmetro médio de 520 metros,com cerca de 15 metros de largura, que, ao fim da concretagem, será uma peça única. Ou seja: não terá juntas de dilatação. Terá, sim, as juntas de construção, mas esse piso acaba sendo uma peça única, como se fosse um piso monolítico, e circular, o que é um agravante. Porque ele vai trabalhar, vai se contrair ou expandir, se for exposto a variações térmicas, mas, do ponto de vista de nível, se ele tiver que deformar, ele não poderá deformar relativamente, terá que ser por igual. Mas ele também não pode ficar se expandindo e contraindo. Por isso, o processo de construção dele vai ser todo fatiado, vamos trabalhar com concreto de baixíssima retração, o tipo dos agregados também é um detalhe importante. Na verdade, toda a consultoria de concreto é uma questão extremamente importante nesse projeto. Muito provavelmente nós devemos fazer algumas provas antes da construção. Portanto, há toda uma demanda por especificações especiais, desde o estágio de projeto até a execução.
GC – No tocante ao tratamento do solo e fundações, também foram feitas especificações sofisticadas?
Oscar Vigna – Evidentemente. Para se ter uma ideia das exigências, a área do prédio onde serão depositados os aceleradores e as linhas de luz, que é o que chamamos de hall experimental, do ponto de vista de fundação, será totalmente destacada do restante do prédio à sua volta.
O prédio em volta será depositado sobre fundações com estacas hélice continuas monitoradas, toda a infraestrutura e superestrutura é em concreto moldado in loco. Esse prédio terá três pavimentos nessa região, cujos pisos serão em lajes, de maneira o garantir uma rigidez gigantesca a toda essa estrutura.
Essa solução foi adotada a partir de uma série de simulações que foram feitas para antecipar como esse prédio se comportaria, para evitar justamente essas vibrações e outras perturbações a partir da circulação de pessoas.
Ao todo serão 900 estacas na edificação externa, e depois mais 1,3 mil estacas de última geração, fundamental para a estrutura do prédio.
GC – Como esse prédio será ocupado?
Oscar Vigna – Imagine um prédio com três faixas de circunferências. Na primeira delas, indo do centro em direção às extremidades, serão depositadas a casa de máquinas, as centrais de utilidades com schillers, bombas, compressores, bem como todas as salas e fontes, onde ficarão os sistemas destinados a alimentar os aceleradores. Na segunda faixa ficará o hall experimental, de que eu falei, com o que chamamos de piso crítico, onde serão depositados os aceleradores e as linhas de luz.
GC – Esse será o ponto mais sensível de toda a estrutura predial?
Oscar Vigna – Exatamente. Essa faixa do meio, como falei, será totalmente destacada das demais. E na faixa externa eu terei três pavimentos. O primeiro deles, que circunda o prédio, será destinado à instalação dos laboratórios de apoio. Serão laboratórios químicos, físicos, para preparação de amostras, pessoal de vácuo, pessoal de alinhamento, etc.No segundo pavimento teremos escritórios. E no terceiro, teremos uma área técnica, com um conjunto de painéis, como os de subestação de energia, algumas máquinas de ar condicionado, etc.
Toda essa estrutura da primeira e da segunda faixas será interligada pela cobertura do prédio, que será em estrutura metálica, provavelmente com telhastrapezoidais, totalmente apoiada sobre elementos que têm a função de atenuar parte da vibração que é produzida pela própria estrutura.
GC– É como se fosse um sistema de suspensão?
Oscar Vigna – Exatamente. São aparelhos elásticos que têm a função de compensar as deformações da estrutura metálica e do concreto, em função das variações de temperatura, e também têm a função de atenuar as vibrações. E outro aspecto importante dessa cobertura e a transmitância térmica, que é das mais baixas que se encontra no mercado. Isso porque outro aspecto importantíssimo nesse projeto é a estabilidade térmica desta área onde fica localizado o piso crítico. Imagine esse hall, com 600 metros de circunferência, por 30 metros de largura, e cerca de 10 metros de pé-direito, mantido a uma temperatura de meio grau.
E dentro desse hall, protegendo os aceleradores,nós ainda teremos uma blindagem em concreto moldado in loco, com paredes da parte interna com 80 centímetros de espessura; da parte externa com 1 metro, ou 1 metro e meio de espessura, dependendo dos trechos; e a cobertura com 1 metro de espessura.
Como os três aceleradores produzem radiação, para tornar o exterior habitável, é necessário fazer essa proteção radiológica.
CG – Isso significa que essas instalações, caso não sejam tomadas as devidas precauções, estão sujeitas a contaminações?
Oscar Vigna – Não. A fonte de energia é passiva. Você tem que energizar para ter radiação. Desligou, cessa radiação. Ela não é uma fonte permanente de energia. A radiação só existe se eu tiver o elétron girando. Se eu corto a radiofrequência, que é o que impulsiona o elétron, ele se perde e acabou a radiação. Não há possibilidade de vazamento de energia ou radiação, e se você abrir uma das portas de acesso ao túnel do anel de 518 metros, imediatamente um sistema de segurança desliga os imãs que são responsáveis pela manutenção dos elétrons em movimento.
CG – Quando o laboratório deverá entrar bem pleno funcionamento?
Oscar Vigna – Este é um projeto modular, dividido em fases. Inicialmente nós só vamos instalar 13 das 40 linhas de luz previstas no projeto como um todo. Todas as 40 linhas de luz, deverão levar uns 10 ou 15 anos para entrarem em funcionamento. Todas as instalações previstas, portanto, serão construídas de forma modular. Dos 10 schillers previstos em projeto, para o prédio completo, nósvamos fazer apenas sete, agora. Nós vamos construir todo o prédio, fechar toda a casca dele, mas uma boa parte das salas, laboratórios de apoio, escritórios, ou seja, metade da circunferência deste prédio vai ficar inacabada.Quando partirmos para uma segunda etapa do projeto, vamos fazer mais 25 linhas de luz, e junto com elas vamos fazer o complemento das edificações, as instalações necessárias, das redes de utilidades etc.
Não adianta fazer 40 linhas de luz agora, até porque não há usuário pra isso tudo. Além disso, estas técnicas de prospecção evoluem muito rapidamente. Este é um setor em processo de inovação constante. Então, aquilo que estamos prevendo fazer hoje, muito provavelmente daqui a uns três anos já estará superado.
CG – A Racional Engenharia é a empresa responsável pela execução do projeto do laboratório. Ela já tinha conhecimento técnico específico pra isso, ou foi buscar esse conhecimento do exterior?
Oscar Vigna – Não tinha. A coisa funcionou da seguinte forma: quando nós começamos a pensar esse projeto, de desenvolver essa segunda fonte um pouco mais avançada, de quarta geração, nós pensamos também em recorrer ao conhecimento de todo esse pessoal que construiu esses aceleradores que existem. E essa é uma área muito competitiva, mas também é muito colaborativa.
Nessa área de pesquisa, é óbvio que todo mundo quer descobrir uma novidade antes dos outros. Mas todo mundo colabora em prol do desenvolvimento do conhecimento científico. Desde o pessoal dos equipamentos, até o pessoal do building, todo mundo interage com os outros laboratórios. E com o nosso projeto foi assim. Participamos de uma série de visitas a instalações, fomos a uma série de congressos, conferências, sempre perguntando: como vocês construíram, quais foram as dificuldades, como vocês controlam, etc. Houve uma troca muito intensa de experiências e informações muito intensa. Quando estávamos fazendo a contratação do projeto executivo, que foi feito pela Engineering, organizamos um workshopsobre estabilidade. Trouxemos representantes de outros laboratórios envolvidos com isso, e convidamos representantes das empresas de projeto. Houve uma grande interação com o pessoal de fora do Brasil, que persiste até hoje.
A Engineering, por exemplo, visitou vários laboratórios no exterior, interagiu com o pessoal que construiu ou está construindo empreendimentos deste tipo. Mas não podemos esquecer que aqui temos condicionantes que mudam tudo, como tipos de solo, clima, mercados, disponibilidade de materiais. Enfim, o desafio foi lançado para as empresas nacionais, discutimos muito, fizemos uma série de protótipos – a solução para o piso especial, por exemplo, atrasou o projeto em mais de seis meses – mas fizemos uma opção: não adiantava cumprir prazos se o prédio não funcionar como queremos. Em função disso, a obra está ficando mais cara justamente porque nós dilatamos o cronograma, Uma obra que é possível fazer em 30 meses, nós fazer em 40 meses.
GC – Qual o status da obra hoje?
Oscar Vigna – O canteiro já foi instalado. Nós iniciamos a obra oficialmente em 1 de dezembro de 2014. Como marco nós temos o 29º mês, que é quando a construtora tem que nos entregar a tal blindagem de concreto de que eu falei, para começarmos a montagem dos aceleradores. Isso é um complicador, porque teremos obras acontecendo, simultaneamente à instalação de equipamentos extremamente delicados. Para solucionar esse desafio, teremos que investir muito em logística e planejamento. Por tudo isso, acreditamos ia das que o Sirius será não apenas um marco na história das Ciências e Tecnologia no Brasil, como também uma nova referência na história da nossa Engenharia.