Folha de S. Paulo em 27/03/2017
“Berra mais que um gramofone de italiano, mas tem boa saúde”, escreveu o delegado Júlio Cezar de Cerqueira Leite à sogra em 14 de julho de 1931, para anunciar o nascimento de seu primeiro e único filho, que recebeu o nome de Rogério. O bebê de voz potente cresceu, tornou-se uma das figuras mais ativas e influentes da comunidade científica brasileira e, prestes a completar 86 anos, decidiu publicar sua autobiografia.
“Um Aprendiz de Quixote: Memórias de um Arruá” (Verbena Editora) é um registro informal, bem-humorado e quase sempre brutalmente honesto da trajetória do engenheiro eletrônico e físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, que integra o Conselho Editorial desta Folha desde os anos 1970 e é membro do Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia.
“Nunca fui um verdadeiro cientista, creio que sou principalmente um curioso. Minha vocação, no sentido popular da palavra, é extremamente ambivalente. Fico emocionado tanto com música, literatura e artes em geral quanto com a descoberta da natureza, exatamente como fazem as crianças”, diz Cerqueira Leite ao tentar explicar sua paixão simultânea pelas ciências naturais e pelas humanidades, um dos elementos constantes de sua carreira, que o diferenciam da maioria dos cientistas na ativa hoje.
Outra constante é uma certa vocação para a encrenca, numa forma ou noutra. Daí a precisão da escolha vocabular no subtítulo do livro, no qual ele se classifica como um “arruá” (palavra de origem tupi que levou este escriba a consultar o dicionário: os sinônimos incluem termos como “arisco”, “bravio”, “indócil” e “brigão”).
DE CIDADE EM CIDADE
Durante a infância e adolescência complicadas, com a morte da mãe pouco antes de ele completar cinco anos e a do pai uma década mais tarde, o menino passou tempo considerável andando de cidade em cidade, acompanhando as transferências do pai ou morando por alguns períodos com a avó paterna (que só colocava as mãos nele para aplicar beliscões) ou com tios.
Aos trancos e barrancos, às vezes perdendo o ano escolar por causa das sucessivas mudanças de cidade, criando caso com colegas e professores ou sendo perseguido por eles, sempre de olho nas garotas mais bonitas da classe ou do bairro, o garoto desenvolveu uma “persona” excêntrica, algo esnobe, em suas próprias palavras, mas com uma formação cultural e científica sólida.
Desenvolveu ainda um leve preconceito assumido contra os “carolas”, em parte por influência do pai, “comunista e ateu praticante”. “Creio que entre cientistas a proporção de religiosos e místicos é menor que 10%. Isso não quer dizer que 90% sejam ateus ou céticos absolutos. Muito ateu tem medo de fantasma”, brinca ele.
DO ITA AOS “BELL LABS”
Cerqueira Leite ingressou no curso de engenharia do ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica) em 1952 e, além de trazer uma lufada de ar artística para um ambiente em que quase ninguém costumava discutir ópera, cinema ou literatura, passou a conviver com colegas de curso e professores que desempenhariam papel importante na construção da comunidade científica brasileira.
Casou-se com Ruth Mattos no final da graduação, tornou-se professor do ITA logo em seguida e, pouco depois, partiu para fazer seu doutorado na França, quando o casal tinha acabado de ter sua primeira filha, Luciana (os dois teriam ainda outra menina, Helena, e um filho, Sergio). Terminado o doutoramento, Cerqueira Leite recebeu um convite para trabalhar nos Laboratórios Bell (EUA), então a Meca da ciência mundial, pesquisando novos tipos de lasers. Ele só voltaria em definitivo para o Brasil em 1970, com a fundação da Unicamp, da qual se tornou um dos primeiros professores.
Foi em Campinas, nos anos 1980, que Cerqueira Leite ajudou a articular a criação de uma de suas principais contribuições para a pesquisa brasileira, o LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron), que pode ser considerado o equivalente nacional dos grandes aceleradores de partículas europeus e americanos. E foi na metrópole do interior paulista que o físico deu impulso a projetos de polos tecnológicos e incubadoras de empresas voltadas à inovação, um esforço que, segundo ele, ainda está longe de dar os devidos frutos no país, apesar de alguns resultados animadores.
“Hoje, o governo apoia ciência e tecnologia porque todos os outros países estão fazendo a mesma coisa, e não por verdadeira convicção. O Brasil ainda não detém conhecimento científico e tecnológico básico adequado. Há problemas culturais de grande porte, e as empresas não estão preparadas para assimilar tecnologia”, analisa Cerqueira Leite.
Ele aponta ainda “problemas de gestão extraordinários” nas universidades e institutos de pesquisa, “contaminados pelo corporativismo”. “Basta ver o jogo de poder nas universidades durante a escolha de reitores, que não passa de uma troca de favores cujo modelo é o nosso sistema parlamentar. Não há nenhum país no mundo que use esse tipo de escolha de dirigentes para universidades e instituições de pesquisa.”
UM APRENDIZ DE QUIXOTE: MEMÓRIAS DE UM ARRUÁ
AUTOR Rogério Cezar de Cerqueira Leite
EDITORA Verbena
QUANTO R$ 35 (R$ 26,09 ebook); 192 págs.
Conheça a trajetória do pesquisador
14 de julho de 1931
Rogério Cezar de Cerqueira Leite nasce em Santo Anastácio (SP)
1952
Ingressa no ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica)
1958
Forma-se em engenharia eletrônica e computação no ITA
1962
Conclui doutorado em física de sólidos na Universidade de Paris; depois, torna-se pesquisador dos Laboratórios Bell nos EUA
1970
Assume o cargo de professor na Unicamp; hoje, é professor emérito da universidade
1978
Torna-se membro do Conselho Editorial da Folha, posição que ainda ocupa
1985
Ajuda a idealizar o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, espaço para pesquisas de ponta na área de física de partículas e outros temas
1995
Cria a primeira incubadora de empresas de base tecnológica do mundo em Campinas (SP)
1998
Torna-se presidente do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), que engloba o Síncrotron e outros laboratórios de ponta
Repercussão: Boa Informação; Sorrentino; Blog Rogério Cerqueira Leite