Agência Fapesp, em 15/08/2014
Um novo mecanismo de inibição do proteassomo – complexo proteico considerado um alvo terapêutico contra o câncer – é o tema de um artigo publicado na revista Chemistry & Biology. A primeira autora do trabalho é a brasileira Daniela Trivella, pesquisadora do Laboratório Nacional de Biociências do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (LNBio/CNPEM).
Os resultados do estudo, feito com apoio da FAPESP e parceria de pesquisadores da University of California em San Diego, nos Estados Unidos, e da Technische Universität München, na Alemanha, abrem caminho para o desenvolvimento de uma nova geração de drogas quimioterápicas mais eficiente e menos tóxica.
“Já desenhamos uma série de moléculas com base nesse novo mecanismo identificado. Pretendemos agora sintetizá-las em parceria com a pesquisadora Marjorie Bruder, também do CNPEM, e testar sua potência. O objetivo é otimizar o efeito de inibição do proteassomo, tornar o composto ainda mais seletivo para as células tumorais e driblar os problemas de resistência observado nas drogas disponíveis no mercado”, contou Trivella.
Pertencente a uma classe de enzimas conhecidas como proteases, o proteassomo é um complexo proteico responsável por diversas funções importantes no interior das células, como a eliminação de proteínas danificadas ou não funcionais e a regulação de processos de apoptose (morte programada), divisão e proliferação celular.
Desde a aprovação do fármaco bortezomib, em 2003, ficou demonstrado que moléculas capazes de inibir a atividade do proteassomo matam as células tumorais com grande eficiência e têm efeito menor sobre as células sadias.
“As células do câncer são mais dependentes do proteassomo que as demais, pois seu metabolismo é acelerado, sua taxa de divisão e proliferação é alta e, por isso, vivem sob um estado crônico de estresse oxidativo e proteico. Acabam sintetizando proteínas em excesso, muito rapidamente e com baixa qualidade. O proteassomo é o grande lixeiro que tenta limpar a bagunça na célula tumoral”, contou Trivella.
Além disso, acrescentou a pesquisadora, sabe-se que, ao inibir o proteassomo, é possível aumentar as taxas de apoptose e reduzir as de divisão e proliferação celular, que estão alteradas no tumor.
Embora o bortezomib venha sendo usado com sucesso desde então, principalmente no tratamento de mieloma múltiplo (câncer na medula óssea), a droga apresenta efeitos colaterais importantes – dentre os quais se destaca a neuropatia periférica, caracterizada por formigamento, dor ou perda de sensibilidade nos braços e pernas.
De acordo com Trivella, isso ocorre porque o quimioterápico inibe não apenas o funcionamento do proteassomo como também de outras proteases importantes para o organismo.
Em 2012, foi aprovado o fármaco carfilzomib inspirado em uma molécula natural chamada epoxomicina. Apesar de mais seletivo e eficaz contra o câncer, o medicamento inibe o proteassomo de forma irreversível tanto nas células tumorais como nas sadias – o que prejudica seu uso prolongado em razão da alta toxicidade.
Com o tempo, contou Trivella, verificou-se que certas mutações no proteassomo e mecanismos bioquímicos alternativos conferiram ao tumor resistência às drogas disponíveis no mercado. Além disso, essa primeira geração de inibidores não apresenta muito efeito no tratamento de tumores sólidos, o que limita sua aplicação.
Em busca de alternativas
Também em 2012, pesquisadores norte-americanos e brasileiros isolaram em cianobactérias oriundas do Caribe uma molécula natural nomeada carmaficina, que possui o mesmo grupo reativo (porção da molécula que interage com o proteassomo) do carfilzomib, conhecido como epoxicetona.
“Epoxicetonas são inibidores muito potentes e seletivos do proteassomo por interagirem com esta enzima em duas etapas reacionais, sendo a primeira uma fase reversível e a segunda, irreversível”, explicou Trivella.
Mas, além de inibir o proteassomo de forma irreversível, o composto apresentava certos problemas de instabilidade química. Com o objetivo de otimizar seu efeito e encontrar novos grupos reativos, pesquisadores do Scripps Institution of Oceanography, da University of California em San Diego, desenvolveram uma série de análogos sintéticos com pequenas modificações estruturais.
Esses compostos foram testados por Trivella durante estágio realizado na Califórnia em seu pós-doutorado, quando ainda estava vinculada ao Instituto de Química da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
“Minha missão era comparar a potência dos diversos compostos e, caso encontrássemos algo interessante, partiríamos para estudos mais aprofundados. Para isso, foram realizadas curvas concentração resposta, nas quais se verifica a concentração da droga necessária para causar a inativação de 50% do proteassomo (IC50) ou, em experimentos paralelos, a morte de 50% das células tumorais em cultura”, contou a pesquisadora.
Uma das moléculas testadas tinha como grupo reativo uma enona e congregava características da carmaficina e de outra molécula natural denominada siringolina, isolada a partir de patógeno de plantas.
“A siringolina já havia sido reportada como inibidora irreversível do proteassomo em uma única etapa reacional, com IC50 na ordem de micromolar – o que não é muito potente. Queríamos verificar os efeitos da combinação do esqueleto químico da carmaficina com grupos reativos mais similares ao da siringolina. Imaginávamos que essa nova molécula com grupo reativo enona teria efeito parecido, mas foi 10 vezes mais potente que a siringolina”, disse Trivella.
Ao investigar os mecanismos reacionais da nova molécula – denominada carmaficina-siringolina enona –, a pesquisadora verificou que, ao contrário da siringolina e assim como a epoxicetona, a enona interage com o proteassomo em duas etapas, sendo que a segunda reação é do tipo irreversível.
No entanto, Trivella observou que, no caso da enona, a segunda reação ocorre de forma mais lenta, aumentando a duração da fase reversível da inibição da carmaficina-siringolina enona.
“Como a inativação irreversível do proteassomo tem efeitos tóxicos, a maior janela de reversibilidade observada para a carmaficina-siringolina enona potencialmente reduzirá a toxicidade desta nova classe de inibidores do proteassomo”, disse Trivella. “O composto apresentaria, assim, um equilíbrio entre seletividade e potência.”
Os testes de toxicidade ainda estão em andamento, segundo Trivella. Paralelamente, foram feitos estudos com auxílio de técnicas de cristalografia (que consiste em formar um cristal a partir de soluções concentradas da enzima de interesse purificada e então estudá-lo por difração de raio X) para desvendar exatamente como ocorre a interação entre o alvo enzimático e o inibidor carmaficina-siringolina enona.
“Descobrimos que ocorre uma reação química chamada hidroaminação, nunca antes observada em condições fisiológicas. Esse tipo de reação é muito usado por químicos sintéticos no preparo de substâncias, mas, normalmente, são necessárias condições muito específicas de temperatura, pH e uso de catalisadores para que ocorra. Como mecanismo de inibição enzimática nunca havia sido reportado”, disse Trivella.
Inspirado por esse novo mecanismo de inibição do proteassomo, o grupo do LNBio planeja sintetizar e testar uma nova série de análogos da carmaficina-siringolina enona para verificar efeitos sobre a janela terapêutica (morte preferencial de células tumorais em relação às células sadias) e avaliar se são capazes de reagir também com proteassomos resistentes aos inibidores tradicionais.
Outra meta de Trivella é buscar na biodiversidade brasileira compostos naturais que possam servir de inspiração para o desenho de outras classes de inibidores do proteassomo.
“Precisamos de um pouco de inspiração da natureza para ampliar as opções de grupos reativos e de estrutura de moléculas. Analisando a diversidade química disponível em nossa biodiversidade, aumentaremos nossas chances de encontrar alternativas ainda mais inovadoras para otimizar propriedades como potência, seletividade e farmacocinética”, afirmou.
Repercussão: Portal Exame, Jornal do Brasil, Planeta Universitário, Educacionista, Trianon Trade, Oncobiologia UFRJ. Gente e Notícia,