Tilt UOL em 21/12/2021
Não é apenas o turismo espacial que avança rapidamente. A indústria farmacêutica também já está embarcando nesta nova era de explorações ousadas. E um passo importante acontece nesta semana no setor: proteínas do vírus Sars-Cov-2, que causa a covid-19, estão sendo levadas ao espaço para um experimento inédito, liderado por pesquisadores brasileiros.
O material pegou carona na espaçonave Dragon a bordo de um foguete Falcon 9, da empresa SpaceX, que decolou às 5h desta terça-feira (21), no complexo de lançamento do Centro Espacial Kennedy da Nasa na Flórida (EUA).
O destino final do experimento, que consiste em cristalizar proteínas no espaço, é o Kibo, módulo japonês da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês).
A aposta da indústria farmacêutica no estudo é de que a cristalização no ambiente de microgravidade da estação espacial poderá acelerar o desenvolvimento de remédios que reduzam a replicação do vírus.
O experimento, que ganhou o nome de Cimed X, é uma parceria entre a farmacêutica brasileira Cimed, terceira maior fabricantes de medicamentos genéricos do país, com o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), vinculado ao Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovações, e a companhia de logística Airvantis.
O projeto também tem a participação de empresas japonesas e da Jaxa, agência espacial do Japão.
Experimentos com o vírus da covid-19
A principal vantagem dos testes realizados em ambiente de microgravidade é melhorar a qualidade dos dados experimentais, afirma Daniela Trivella, pesquisadora do CNPEM, que integra o comitê científico do projeto.
“No caso da cristalização, pela qual passarão as amostras de proteína do Sars-Cov-2, se os cristais se formarem, eles podem ter uma qualidade superior aos produzidos na Terra.”
A pesquisadora explica que a gravidade interfere na formação desses cristais. “No ambiente de microgravidade, alguns dos fenômenos que atrapalham essa cristalização são anulados ou diminuídos”. Ou seja, a amostra adquire um formato mais ideal para ser visualizada e analisada posteriormente.
As proteínas serão acondicionadas em tubos com diâmetros de um fio de cabelo e instaladas em um dispositivo que permite que um astronauta misture a solução contendo as proteínas-alvo a um líquido cristalizante.
“Após a mistura, ocorre o processo de cristalização das proteínas que, posteriormente, retornarão à Terra”, destaca o engenheiro de sistemas espaciais Lucas Fonseca, fundador e presidente-executivo da Airvantis, responsável pela logística espacial.
No caso do experimento brasileiro, ele será todo executado dentro do módulo Japonês sob responsabilidade da Agência Espacial Japonesa (Jaxa, na sigla em inglês).
Um astronauta japonês irá manusear o experimento que acontece em poucas horas, mas como o material depende de um veículo para retorno, ele poderá ter que aguardar no espaço por mais de três meses até voltar à Terra.
De volta para a casa
Se tudo correr bem no espaço, assim que voltarem à Terra, os cristais serão analisados no Sirius, o acelerador de partículas do CNPEM em Campinas (SP), que permite gerar imagens tridimensionais de proteínas com resolução atômica.
Com isso, é possível ver e analisar a proteína, que é uma molécula muito pequena, aproximadamente 50 vezes menor que o vírus, destaca a pesquisadora Trivella. “Ao compreendermos a estrutura das proteínas, poderemos, por exemplo, investigar seus mecanismos de ação e suas interações com outras moléculas.”
Tal como no espaço, a fase do experimento na Terra também é bem rápida. “Demora menos de três minutos”, conta. Depois, segundo ela, há toda uma etapa de processamento e validação dos dados, reconstrução da estrutura da proteína e análises, que pode demorar bem mais.
“O processamento leva de algumas horas a poucos dias. As análises da estrutura da proteína podem levar vários meses. É nessa etapa que revelamos detalhes que podem indicar a função dessa molécula para o vírus ou para o desenvolvimento da doença”, completa.
A partir daí, estudos derivados podem ser realizados, com novos experimentos e abordagens computacionais, esclarece a pesquisadora. Ela ressalta ainda que embora, no futuro, os resultados da atual pesquisa possam contribuir para o desenvolvimento de novos medicamentos, essa etapa não faz parte do projeto.
“Os conhecimentos gerados nesse experimento devem ser publicados e divulgados à comunidade científica, já que, até o momento, a estrutura tridimensional dessa proteína no nível molecular é desconhecida.”
Pode dar errado?
Mesmo que a cristalização de proteínas do Sars-Cov-2 não ocorra, teremos também algum tipo de resultado, garantem os pesquisadores do Comitê Científico do Cimed X.
“Na ciência, nem sempre o resultado esperado é o que acontece e isso, por si só, já é uma resposta para alguma pergunta e também a brecha para o levantamento de novas perguntas”, diz a farmacêutica Patrícia Lazzarotto, do comitê.
“Sempre aprendemos, e com isso melhoramos o próprio método científico para permitir experimentos antes impossíveis”, acrescenta.
Em junho de 2022, outras três amostras de proteína da covid-19 serão enviadas para a Estação Espacial Internacional, a partir do Cazaquistão. A ideia é justamente aprender com possíveis erros de um primeiro voo e melhorar o experimento.
De qualquer maneira, o grupo de pesquisadores ressalta que se a cristalização não for bem-sucedida no espaço, continuará a ser tentada por métodos convencionais, aliando novas técnicas de análise baseada em luz síncrotron no acelerador Sirius.
Além de Daniela Trivella e Patrícia Lazzarotto, fazem parte do comitê científico responsável pelo projeto Cimed X, Douglas Galante, PhD em Astronomia e Thaís Russomano, médica especializada em Medicina Espacial.
Estudos no espaço
Mesmo sem a previsão do desenvolvimento de remédios contra a covid-19 na primeira fase do projeto, a farmacêutica Cimed anunciou que irá investir em estudos no espaço, parte de R$ 300 milhões destinados para pesquisas.
O estudo espacial com amostras de proteína do Sars-Cov-2 é inédito e liderado por instituições brasileiras. Mas, cristalizar proteínas no espaço não é exatamente uma novidade. A técnica já é utilizada há mais de 20 anos.
De acordo com informações do Comitê Científico do Cimed X, a cristalização foi descoberta há cerca de 150 anos, e o método foi desenvolvido pela primeira vez já no final do século 19.
Os primeiros experimentos de cristalização de proteínas em microgravidade foram realizados em foguetes e, depois, em ônibus espaciais, na década de 1980.
Os avanços das técnicas laboratoriais unidas à robótica tornaram possível um rendimento que não era possível há 25 anos. Outro salto veio com a instalação de estruturas para cristalização na Estação Espacial Internacional (ISS).
Segundo os pesquisadores do Cimed X, há diversos casos de sucesso de aplicação da tecnologia da microgravidade na área de proteínas, tanto no Brasil como fora dele.
Outra investigação em andamento no espaço, por exemplo, estuda a enzima triptofano sintase, que não é encontrada no corpo humano, mas é importante para o crescimento de bactérias. A pesquisa pode ajudar cientistas a desenvolver inibidores para controle da contaminação por salmonela, que atinge mais de 94 milhões de pessoas no mundo por ano.
A aspartato aminotransferase, uma enzima humana utilizada como biomarcador para doenças do fígado e cardíacas, também está sendo investigada acima da órbita da Terra. Segundo pesquisadores, resultados poderão ajudar a desenvolver compostos para monitorar pacientes submetidos a tratamentos de doenças que afetem esses órgãos.
Em oncologia, pesquisadores pretendem usar a microgravidade para cristalizar uma proteína de membrana que desempenha um papel importante no desenvolvimento de tumores e na sobrevivência das células cancerosas. Os resultados podem ajudar a aprimorar tratamentos já existentes, contra o câncer de mama, por exemplo, e também a desenvolver novas terapias.