Exame em 24/02/2022
A busca por novos remédios no Brasil nunca foi tão forte. Para ir além dos genéricos, as farmacêuticas nacionais aumentam a aposta na arriscada inovação radical, que cria medicamentos do zero. O investimento em pesquisa cresceu até 150% e já soma 1 bilhão de reais. A meta: ganhar relevância global
Prestes a completar 50 anos, a farmacêutica Eurofarma ergueu uma espécie de playground para pesquisadores dos fármacos do futuro. Inaugurado em 2020, o centro de inovação Eurolab é um espaço com seis laboratórios espalhados por 21.000 metros quadrados nos arredores da sede da farmacêutica, em Itapevi, na Grande São Paulo.
Mais de 120 aparelhos de altíssima geração analisam a interação entre substâncias químicas. Uma minifábrica é capaz de produzir remédios partindo de estudos conduzidos ali. Tudo isso faz parte de um plano ambicioso da farmacêutica de deixar para trás a vocação de só produzir genéricos e virar uma referência global em inovação. Para isso, aportou 1,5 bilhão de reais em pesquisas nos últimos seis anos — 23% dessa quantia só em 2021. O Eurolab está no centro da estratégia. “Por definição, uma empresa farmacêutica descobre novas drogas”, diz Maurizio Billi, presidente da Eurofarma. “Queremos um dia descobrir algo capaz de mudar a vida das pessoas.”
O caminho até lá traz desafios à Eurofarma. Criar remédios envolve investimentos arriscados e de longo prazo. O intervalo entre a descoberta de uma molécula com potencial terapêutico e a chegada de um remédio com essa partícula às prateleiras das farmácias pode levar 15 anos. Muitas pesquisas simplesmente param na metade, sem resultados concretos. Em razão das incertezas, um investimento parrudo em inovação depende sobretudo de uma expansão acelerada nos negócios. Só assim uma farmacêutica terá um colchão financeiro capaz de suportar eventuais fracassos científicos.
Ao que tudo indica, a Eurofarma está no momento ideal para a inovação radical. A receita anual da empresa cresceu perto de 20% na pandemia. A receita líquida dos 12 meses entre outubro de 2020 e setembro de 2021 foi de 6,7 bilhões de reais. Hoje em dia, 30% das vendas vêm de fármacos criados nos últimos anos. Daqui para a frente, a vontade é faturar mais em cima de remédios novos. A Eurofarma tem 240 projetos de remédios em desenvolvimento, dos quais 40% envolvem inovação incremental ou radical. A primeira cria melhorias em remédios já em circulação (reduzir os efeitos colaterais, por exemplo).
A segunda descobre moléculas para criar medicamentos do zero — e é o centro das atenções da Eurofarma. A ambição é virar referência mundial em antibióticos, em analgésicos e em fármacos contra doenças infecciosas. Há alguns meses, a farmacêutica bateu a marca de 1.000 moléculas criadas, das quais 350 já foram patenteadas. Algumas devem ser testadas com humanos em 2024 e, se tudo der certo, estarão à venda em oito anos. “Como a inovação radical é a mais demorada, preciso ir criando outros produtos para sair da armadilha dos genéricos”, diz Martha Penna, líder de inovação da Eurofarma.
O momento da indústria farmacêutica é propício para empreitadas de fôlego como a da Eurofarma. Novos tratamentos médicos e, mais recentemente, a pandemia, elevaram a demanda por remédios e garantiram receitas recordes. Em 2020, o setor faturou 129 bilhões de reais no Brasil, alta de 26% sobre 2018. Em meio à incerteza sobre o PIB brasileiro prevista para os próximos anos, o setor deverá crescer 9,5% em média até 2025, quando as receitas devem bater 200 bilhões de reais.
No consolidado da América Latina a expansão será de 12% ao ano, nas contas da consultoria americana em saúde IQVIA — será a maior expansão entre todas as regiões do mundo. Tudo isso motivado por fatores como o envelhecimento rápido da população, a adesão a novos hábitos de consumo e a recuperação das economias pós-covid.
As farmacêuticas do Brasil poderiam estar numa condição ainda melhor se tivessem aberto os olhos para a inovação há mais tempo. Em 2021, 64% dos remédios vendidos por aqui vieram de laboratórios com capital nacional. Essas vendas, contudo, só geraram 50% do valor transacionado pelo setor. Por trás do descompasso está a propensão das farmacêuticas brasileiras a fabricar genéricos, um mercado explorado por muitos concorrentes. Após duas décadas da legislação criadora desse mercado no Brasil, as chances de uma fabricante de genéricos ter um diferencial no mercado ficaram muito pequenas — ganha mercado quem reduz mais o preço.
“O mercado tende a ficar mais comoditizado, o que impacta as margens dessas empresas”, diz Filipe Mesquita, sócio da consultoria Boston Consulting Group, focada em negócios de saúde. Por isso, as farmas nacionais entenderam a importância da inovação. “Não é só de cópias que elas vão sobreviver”, diz Nelson Mussolini, presidente do Sindusfarma, sindicato do setor. Não à toa, as farmacêuticas investiram um recorde de 1 bilhão de reais em 2021 em inovação, segundo o Grupo FarmaBrasil, formado por 13 laboratórios brasileiros.
Só a Hypera investiu 350 milhões de reais em inovação em 2020, com foco principal em melhorias incrementais em marcas consagradas, como a Neosaldina. A tendência foi acelerada por percalços na resposta brasileira à pandemia. “Não tivemos, por exemplo, a capacidade de desenvolver um fármaco para o tratamento da covid”, diz Roberto Amazonas, diretor de inovação da farmacêutica EMS.
A conexão com universidades é parte importante na inovação das farmacêuticas. O modelo é usado com força pelos maiores laboratórios do mundo. A presença de acadêmicos de universidades de ponta, como a inglesa Oxford, foi vital para o laboratório AstraZeneca chegar a uma vacina contra o vírus da covid-19. “A associação barateia a pesquisa de novos medicamentos”, diz Humberto Ferraz, diretor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Universidade de São Paulo.
“Temos bons projetos nas universidades brasileiras.” Iniciativa privada e academia ainda falam línguas muito diferentes. Aqui e ali, no entanto, há boas notícias. Talvez o melhor exemplo disso venha do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, ou CNPEM, mantenedor do Sirius, um dos aceleradores de partículas mais modernos do mundo, instalado em Campinas, no interior paulista.
Aceleradores são locais ideais para a inovação radical — somente ali é possível enxergar proteínas e moléculas de forma precisa, e entender melhor sua interação, o que é vital para saber se um fármaco tem potencial ou não. O CNPEM tem 12 parcerias com farmacêuticas, metade firmada de 2020 para cá. “Recebo empresas interessadas em inovar uma vez a cada 15 dias”, diz Kleber Franchini, diretor da divisão de biociências do CNPEM. No fim de 2021, essas parcerias ganharam um reforço extra. A Embrapii, uma empresa pública dedicada a deslanchar projetos inovadores com a participação do governo, de universidades e de empresas, destinou 20 milhões de reais para pesquisas com fármacos.
A associação com a academia virou estratégia de alguns laboratórios brasileiros. É o caso da paulistana Biolab, fabricante do Vonau Flash, um medicamento para enjoo desenvolvido com a Universidade de São Paulo (USP). As vendas do remédio já renderam 24 milhões de reais em royalties para a universidade. Com receita de 2,2 bilhões de reais em 2021, a Biolab investe 8% da receita em inovação, tem 400 patentes e 250 projetos em andamento.
Em breve, o laboratório deve lançar o dapaconazol, um antifúngico 100% criado no Brasil após dez anos de pesquisa. A paranaense Prati-Donaduzzi fechou parceria com a USP para estudos com o canabidiol, um extrato da planta cannabis. “Estamos desenvolvendo o canabidiol sintético para reduzir o custo do medicamento”, diz Eder Fernando Maffissoni, presidente da Prati.
A inovação nas farmacêuticas brasileiras passa também por aproveitar recursos da natureza. O pioneiro é o Aché, dono de pesquisas com a biodiversidade nacional há pelo menos 15 anos. “Acreditamos no potencial delas, dada a relevância do Brasil. Temos 20% da biodiversidade do planeta”, diz Vânia Machado, presidente do Aché. Desde 2005, o laboratório vende o Acheflan, um anti-inflamatório fitoterápico à base da erva-baleeira, planta nativa da Mata Atlântica.
Agora está nos finalmentes de um estudo com uma molécula oriunda da natureza brasileira capaz de combater o vitiligo, doença causadora de manchas na pele. O plano é lançar o medicamento em 2026 e chegar até 6 bilhões de dólares em vendas no mundo. O Aché tem 180 projetos de fármacos, sendo 13 de desenvolvimento de partículas do zero — oito delas extraídas da natureza. Tudo isso elevou o investimento em inovação. Em 2021, o Aché aplicou 155 milhões de reais no tema, quase duas vezes e meia o patamar de 2015. Para este ano, a meta é aportar 200 milhões de reais.
“Isso oxigena um ecossistema de empresas, parceiros e universidades, criando uma espiral positiva”, diz Edson Bernes Junior, diretor de inovação do Aché. Que o diga a startup paulistana Regenera, especializada em pesquisas com mais de 1.500 bactérias marinhas, e com grandes clientes, como a Eurofarma. “Queremos transformar em inovação o que está no fundo do mar”, afirma Mário Frota Júnior, doutor em bioquímica e fundador da Regenera.
Os medicamentos biológicos, feitos de organismos vivos, como células e bactérias, estão no centro da estratégia da farmacêutica paulista Blau, um negócio com receitas anuais na casa de 1,3 bilhão de reais. Esse nicho respondeu por 47% da receita da empresa entre janeiro e setembro de 2021. A empresa está prestes a redobrar a aposta nos biológicos. Recentemente, a Blau investiu 200 milhões de reais numa planta para insumos farmacêuticos ativos, os IFAs, uma espécie de “berçário de fármacos” só com partículas biotecnológicas. “Isso está ligado à missão de aumentar o acesso a medicamentos de alto custo e alta complexidade”, diz Marcelo Hahn, presidente da Blau. Na paulistana Libbs, o nicho serviu de pretexto para um aporte de 553 milhões de reais numa fábrica de biotecnologia voltada para a produção de anticorpos monoclonais, um medicamento biológico à base de clones de células-tronco para o tratamento de alguns tipos de câncer. Eles responderam a 10% dos 2 bilhões de reais faturados pela empresa em 2021. Outra empresa focada em biomedicamentos é a Bionovis, uma joint venture entre Aché, EMS, Hypera e União Química. Já a Cristália tem parceria com a Fundação Oswaldo Cruz para a produção de IFAs em sua planta de biotecnologia, além de 14 projetos de inovação em desenvolvimento.
A inovação está por trás da ambição global das farmacêuticas. A EMS concluiu em 2021 um investimento de 1 bilhão de reais para expandir a capacidade produtiva a mais de 1 bilhão de caixas de medicamentos por ano. Com receita de 18,1 bilhões de reais em 2021, a empresa exporta para 55 países, é dona de uma farmacêutica na Sérvia, a Galenika, e estuda comprar mais concorrentes no leste europeu.
Além disso, quer investir em startups por intermédio da Brace Pharma, operação de venture capital criada em 2013. Hoje são 11 empresas investidas, com pesquisas para tratamento de câncer e doenças genéticas. A EMS também é dona de 70% da Vero Biotech, empresa americana dona de uma tecnologia para tratamento de hipertensão pulmonar.
Em outra frente, aposta em supergenéricos — primeiras versões de um medicamento genérico. A farmacêutica já investiu 50 milhões de dólares nesse segmento. “Nossa ideia é sermos cada vez mais uma empresa entregando inovação com alto investimento em todas as frentes”, afirma Marcus Sanchez, vice-presidente da EMS.
Ainda que as farmacêuticas brasileiras estejam se mexendo, elas estão a anos-luz do investimento em inovação dos gigantes do setor. Responsável por uma das vacinas contra a covid-19 mais vendidas do mundo, a Pfizer faturou 81 bilhões de dólares em 2021 e investiu 17% desse valor em inovação. A Roche aportou no tema 24% dos 68,5 bilhões de dólares de receita em 2021.
“Existe na indústria nacional um movimento para inovar, mas as empresas brasileiras não são a Pfizer, não estão desenvolvendo terapia gênica”, diz Felipe Abdo, consultor da Deloitte focado no setor de saúde. Para chegar um pouco mais perto das big farmas, as farmacêuticas brasileiras pleiteiam um ambiente de negócios mais favorável. Na pauta estão medidas como isenção de impostos sobre fases de pesquisa clínica, quando a viabilidade comercial ainda é incerta. Há ainda o fato de o preço dos remédios no Brasil ser controlado, e muitas vezes a indústria não concorda com o valor estipulado, em especial quando eles trazem alguma inovação. “Nosso maior problema é a precificação. Já chegamos a abandonar um projeto de medicamento desenvolvido com inovação incremental por causa do preço estipulado. É um desestímulo tremendo”, diz Cleiton de Castro Marques, presidente da Biolab.
Os sucessivos cortes nos recursos federais destinados à pesquisa também tornam o ambiente brasileiro hostil à inovação. “Temos a chance de ter mais um setor de classe mundial na indústria brasileira, assim como é com o agronegócio. A indústria farmacêutica está em modo de decolagem, precisa apenas do essencial: segurança jurídica, previsibilidade e políticas de estado”, diz Reginaldo Arcuri, presidente do Grupo FarmaBrasil. A indústria farmacêutica já percebeu a importância de inovar. Se o país valorizar as boas ideias vindas dali, tanto melhor.
AS BRASILEIRAS SE MEXEM
O que as farmacêuticas brasileiras estão fazendo para inovar
Novos laboratórios
- Quem: Eurofarma, fundada em 1972, tem sede em Itapevi (SP)
- Receita: Investiu 155 milhões de reais em laboratório de inovação
inaugurado em 2020 - Resultado: 1.000 moléculas desenvolvidas internamente e 350 patentes
Aposta na biodiversidade
- Quem: Aché, fundado em 1966, tem sede em Guarulhos (SP)
- Receita: Pesquisa moléculas da biodiversidade brasileira, tem 186 projetos, sendo 13 em inovação radical
- Resultado: Tem 104 patentes concedidas e um medicamento para vitiligo em estudo com potencial de vendas de até 6 bilhões de dólares. Parceria com a japonesa Otsuka para pesquisa com molécula própria
Colaboração com a universidade
- Quem: Biolab, fundada em 1997, tem sede em São Paulo
- Receita: Trabalha em parceria estreita com a USP para medicamentos inovadores
- Resultado: 200 milhões de reais é a receita anual do Biolab com o Vonau Flash, medicamento com inovação incremental que já rendeu 24 milhões em royalties para a USP
Aquisição no exterior
- Quem: EMS, fundada em 1964, tem sede em Hortolândia (SP)
- Receita: Investiu em 11 empresas no exterior, com foco em inovação e criação de medicamentos
- Resultado: Mais de 100 patentes concedidas pelo mundo. Aguarda análise da FDA, a Anvisa americana, para um medicamento “supergenérico”, resultado de um investimento de 50 milhões de dólares
Fontes: empresas.
Menor dependência externa
Empresas e institutos de pesquisas investem para ampliar a produção local de insumos farmacêuticos de remédios e vacinas
A pandemia de covid-19 apresentou aos brasileiros a sigla IFA e como ela é fundamental para enfrentar uma crise sanitária. O Ingrediente Farmacêutico Ativo é a matéria-prima para a fabricação de vacinas, mas também de medicamentos e outros produtos da indústria farmacêutica. E o coronavírus revelou a necessidade de o país aumentar a capacidade de produzir os mais diferentes insumos. Durante os piores momentos da pandemia, o Brasil enfrentou a falta de remédios para intubação e atrasos na entrega de matéria-prima para a fabricação de vacinas.
Não há dados específicos sobre a importação de IFA, mas a compra do exterior de produtos farmoquímicos (que incluem o IFA em grande parte) corresponde a aproximadamente 95% do consumo interno, com mais de 10,4 bilhões de dólares em importações em 2020, segundo os números mais recentes do governo federal. O mercado local de IFA era mais aquecido até o início dos anos 1990, quando o país se abriu para as importações. Empresas também fecharam pelo alto custo em desenvolver novos produtos que só vão começar a dar retorno após cinco anos. Paralelamente, China e Índia criaram com subsídios governamentais uma indústria altamente especializada.
Apesar da maior dependência externa, avançam no país empresas e iniciativas para abastecer o mercado com produtos nacionais. A Nortec Química, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, existe há 35 anos e abastece o mercado local de IFA — 85% da produção fica no Brasil. Marcelo Capanema Mansur, presidente da companhia, explica que os produtos da empresa têm preços similares aos praticados lá fora, com a vantagem de sofrerem menos as oscilações do dólar. No portfólio estão as bases de 50 remédios, sendo a especialidade a produção da matéria-prima contra o vírus HIV. “Os antirretrovirais atendem praticamente 100% da necessidade brasileira, e somos um dos líderes mundiais na venda de IFA de anestésicos locais”, explica Mansur. Nesse segmento de anestésicos — que inclui lidocaína, bupivacaína, prilocaína —, 60% da produção é exportada para mais de 30 países. O faturamento da empresa dobrou em cinco anos (300 milhões de reais) com a produção de 550 toneladas de IFA anualmente. E a Nortec se prepara para ampliar sua capacidade em 20%, um investimento de 50 milhões de reais. Há ainda outro aporte de 20 milhões para o desenvolvimento de insumos para remédios do tratamento contra o câncer.
Nessa corrida para ampliar a produção local de IFA, Fiocruz e Instituto Butantan também ampliam e desenvolvem tecnologias locais. Na semana passada, o laboratório do Rio de Janeiro aprovou o primeiro lote da vacina contra a covid-19 100% brasileira. O Butantan vai no mesmo sentido. Uma nova fábrica construída ampliará a capacidade anual de produção em 100 milhões de doses de vacinas. A planta terá múltipla função e poderá produzir vários imunizantes — não só o contra a covid-19 — e seus insumos. No segundo semestre deste ano ela deverá operar de modo experimental.
Gilson Garret Jr.