Síntese do composto químico com método próprio proporcionará a realização de pesquisas em virologia e é exemplo de como a ciência conversada entre áreas resulta em avanços únicos
Um grupo de pesquisa em química sintética do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) desenvolveu um caminho inédito para a obtenção de uma substância considerada essencial em alguns estudos da virologia. Trata-se de uma molécula de difícil importação, pois não é ofertada em volume significativo, e extremamente cara. Um único grama da chamada 7DMA (7-deaza-2’-metiladenosina) equivale a cerca de 130 mil reais. A descoberta foi publicada na revista científica Frontiers in Chemistry.
Paralelamente, outra molécula misteriosa que apareceu como subproduto nas experimentações visando a síntese da 7DMA, foi levada ao acelerador de elétrons Sirius para identificação. Ela se tornou a primeira molécula considerada pequena (em comparação com macromoléculas como as proteínas, por exemplo, para as quais a linha foi inicialmente desenvolvida) a ter sua estrutura revelada na estação de pesquisa Manacá. Esse tipo de análise está sendo aprimorado na linha e, em breve, o sincrotron de quarta geração estará disponível também à toda comunidade de moléculas pequenas.
Por que a 7DMA?
A 7DMA foi originalmente desenvolvida para combater o vírus da Hepatite C e falhou na fase de testes clínicos em humanos. Apesar disso, continua sendo usada em diversas pesquisas para tratar doenças virais. A equipe de virologia do CNPEM havia tentado importar a substância, mas se deparou com os entraves de acesso à quantidade necessitada. Recorreram então ao grupo de química sintética.
Atendendo ao pedido de cooperação, os químicos, coordenados pela pesquisadora Marjorie Bruder, ajustaram um protocolo descrito na plataforma SciFinder (ferramenta essencial no mundo das pesquisas químicas) e encontraram uma maneira nova de chegar à 7DMA, em quantidade adequada para o propósito da pesquisa, e a uma fração do preço de mercado. “Sem essa conquista da área de química, não teríamos conseguido dar prosseguimento com a de virologia”, conta Rafael Elias Marques, que estuda a biologia viral e contribui na busca de tratamentos para doenças como Dengue, Zika, Febre Amarela, assim como para outras menos conhecidas. Entre as últimas, as enfermidades causadas pelo vírus Mayaro e o vírus Usutu.
Com o composto em mãos, os virologistas do CNPEM realizaram o teste contra o vírus Usutu, o causador de uma das doenças emergentes que tem atraído atenção dos órgãos mundiais de saúde, por ter se espalhado da África para a Europa e pelo potencial de complicação de sintomas, ainda pouco estudados. Os pesquisadores observaram que, in vitro, a molécula combateu com sucesso a replicação do agente viral, justificando o aprofundamento da pesquisa nesta área. Marques explica que as etapas iniciais, apesar de longe do tratamento real, são fundamentais e indispensáveis no trajeto até o medicamento de fato.
O virologista afirma que o processo de erro/acerto no uso dos compostos químicos faz parte do fazer científico. Nesse processo, a molécula 7DMA segue promissora para os estudos, ainda mais quando são feitos de forma colaborativa. “Com a substância é possível acontecerem os estudos. Acontecendo os estudos, invariavelmente aumentam as chances de cuidar de doenças que hoje não têm tratamento”, encerra o pesquisador.
Sirius na resolução de subproduto-surpresa
Durante a reação-chave do processo de síntese da molécula 7DMA, a equipe do CNPEM se surpreendeu com a formação inesperada e indesejada de um composto secundário. Ao se debruçar sobre a identificação desse subproduto, Fabrício Naciuk, químico integrante do projeto, aplicou técnicas habituais de caracterização estrutural de compostos químicos, como a espectrometria de massas e ressonância magnética nuclear. Por mais que bastante informativas, a equipe resolveu fechar o diagnóstico do composto misterioso com “chave de ouro”, ao utilizar também o raio-X do Sirius, o acelerador de elétrons de quarta geração do CNPEM.
O resultado de cristalografia de raio-X realizada em uma das linhas de luz do Sirius, a linha Manacá, serviu para bater o martelo no que os pesquisadores já haviam suposto. Para a química Marjorie Bruder “nada é tão direto e deixa tão poucas dúvidas quanto uma análise de raio-X”.
O mais comum nesses casos é o uso em laboratórios de um aparelho chamado “difratômetro de raio-X”. No entanto, nem todas as moléculas consideradas pequenas dão certo em um difratômetro. Para essas, o uso de um síncrotron é a melhor saída.
Segundo o coordenador da linha de luz Manacá, Andrey Nascimento, o uso do síncrotron para desvendar a estrutura de moléculas pequenas é muito mais do que uma solução alternativa. O pesquisador explica que o Sirius gera resultados de altíssima precisão, e, além disso, faz algo importante para pesquisadores interessados em usar as instalações: economiza muito tempo de experimento.
“Desde a coleta dos dados de difração de uma molécula pequena no Sirius, até uma resolução inicial de sua estrutura, pode ser uma questão de apenas minutos!”, revela Nascimento, que explica também que a preparação e a busca pelos cristais adequados para um síncrotron desta geração são menos complicadas e mais rápidas do que para difratômetros.
O uso em conjunto das diversas técnicas analíticas disponíveis no CNPEM permitiu então aos pesquisadores deduzir e propor uma estrutura molecular, bem como o mecanismo pelo qual o subproduto teria sido formado. De fato, o composto misterioso era o fruto da reação de um intermediário com o próprio solvente utilizado na etapa-chave da preparação da 7DMA. “Isto foi bastante surpreendente, pois normalmente, solventes têm o papel principal de dissolução dos reagentes e devem ser inertes às condições reacionais”, complementou Bruder.
Uma vez identificado o subproduto formado, foi possível adequar as condições para eliminá-lo do processo e assim obter a 7DMA, que era o objetivo inicial.
Os pesquisadores envolvidos ressaltam que quando o trabalho é feito em grupo e de forma multidisciplinar, as perspectivas sobre o conhecimento de um mesmo objeto se complementam. Neste caso, temos um “o quê” (visão micro – as moléculas), “para o quê” (visão macro- o vírus, a doença), e ainda poderia prosseguir para o “como”, com investigações sobre a interação entre um possível fármaco (antiviral) e um alvo farmacológico (vírus).
Sobre o CNPEM
Ambiente sofisticado e efervescente de pesquisa e desenvolvimento, único no Brasil e presente em poucos centros científicos do mundo, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) é uma organização privada sem fins lucrativos, sob a supervisão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O Centro opera quatro Laboratórios Nacionais e é o berço do projeto mais complexo da ciência brasileira – Sirius – uma das fontes de luz síncrotron mais avançadas do mundo. O CNPEM reúne equipes multitemáticas altamente especializadas, infraestruturas laboratoriais globalmente competitivas e abertas à comunidade científica, linhas estratégicas de investigação, projetos inovadores em parceria com o setor produtivo e formação de investigadores e estudantes. O Centro é um ambiente impulsionado pela pesquisa de soluções com impacto nas áreas de Saúde, Energia e Materiais Renováveis, Agroambiental, Tecnologias Quânticas. A partir de 2022, com o apoio do Ministério da Educação (MEC), o CNPEM expandiu suas atividades com a abertura da Ilum Escola de Ciência. O curso superior interdisciplinar em Ciência, Tecnologia e Inovação adota propostas inovadoras com o objetivo de oferecer formação de excelência, gratuita, em período integral e com imersão no ambiente de pesquisa do CNPEM. Por meio da Plataforma CNPEM 360 é possível explorar, de forma virtual e imersiva, os principais ambientes e atividades do Centro, visite: https://pages.cnpem.br/cnpem360/.