Revista Pesquisa FAPESP, em 11/10/2012
FERNANDO GALEMBECK
Tales de Mileto, geômetra e astrônomo considerado por alguns o primeiro cientista, foi também um hábil transformador de conhecimento em riqueza. Em um certo ano, previu que haveria uma grande safra de olivas e comprou muitas prensas de óleo, revendendo-as na safra. Assim conseguiu uma grande receita e satisfez necessidades dos produtores de óleo. Se não tivesse acumulado as prensas que mandou fazer, não haveria como prensar todas as azeitonas. Portanto, o primeiro cientista soube usar o conhecimento para gerar riquezas, para si e para outros.
No contexto de hoje temos um desafio global, criado por uma população crescente e expectativa de aumento de consumo, num quadro de recursos naturais finitos. Ambicionamos o desenvolvimento sustentável ou durável, que requer novo conhecimento. E precisamos também mudar atitudes.
O novo conhecimento científico cria possibilidades de inovação, mas também coloca perguntas: qual ciência? Qual inovação? Os recursos são sempre limitados, especialmente em países de renda per capita e índice de desenvolvimento humano baixos. No Brasil, que tem pouca infraestrutura, a situação se torna particularmente séria e as questões se desdobram: onde se deve gastar? Quanto se pode gastar? Quem vai gastar? Como? Os gastos feitos proporcionarão sustentabilidade para o sistema? Para o país? Para o mundo? Essas questões devem estar sempre presentes nas mentes de cientistas, pesquisadores e gestores.
Hoje há no mundo muitos grupos envolvidos com estes problemas. O chamado Grupo Carnegie é formado por ministros de C&T de países do G8 e trata, entre outros temas, das Research Facilities of Global Interest. Estas são hoje principalmente os grandes aceleradores de partículas e observatórios astronômicos. Recentemente o Grupo Carnegie começou a discutir as necessidades de ciência para a sustentabilidade e a transição rumo à economia “verde”. Uma conclusão atual é a de que não existem as infraestruturas que deveriam estar disponíveis, independentemente de méritos intrínsecos das que já existem. Ou seja, não há facilities aptas para sediarem o trabalho científico requerido para o enfrentamento dos problemas globais. Essa situação faz voltar à pergunta: qual ciência?
Ciência de verdade tem que ser original e competitiva, no estado da arte. Por isso observo um problema muito difundido: estudantes e professores frequentemente leem muitos artigos científicos, mas raríssimos leem patentes, ignorando assim uma boa parte do conhecimento de fronteira. Por isso é frequente a apresentação de propostas de pesquisa às agências de fomento, tendo como objetivo resultados que já estão descritos em patentes concedidas pelo USPTO ou outros escritórios de patentes.
Para que a ciência que estamos fazendo crie impactos realmente radicais, ela precisa ser significativa num contexto amplo. Também é preciso rever algumas ideias sobre a organização e a estruturação da ciência. Um artigo publicado no número de julho/agosto da American Scientist, sob o título What creates static electricity?, desafia a crença de que a eletrostática foi resolvida na física do século XIX ou que segue sendo um problema apenas de física. Segundo o autor, respostas a problemas persistentes da eletrostática estão surgindo atualmente da química e de outras áreas. Este e muitos outros casos importantes são ignorados em nosso meio, ainda impregnado de ideias e hierarquias científicas que vêm do positivismo. Embora superadas, estas continuam a ser ensinadas aos nossos alunos e presidem à elaboração de currículos e orçamentos.
Qual inovação interessa? A inovação depende de desenvolvimento, que custa muito dinheiro, por isso só faz sentido fomentar trabalho de P&D que tenha foco bem definido e perspectivas concretas de utilização. A inovação tem que satisfazer necessidades emergentes, e é essencial saber em que setores da agricultura, da indústria e dos serviços estão essas necessidades. Inovação tem impacto econômico, estratégico ou social e, de novo, precisamos saber: em quais cenários? Em qual contexto? Para quem? A ciência em princípio beneficia a todos, mas a inovação frequentemente beneficia alguns, e não outros, podendo mesmo prejudicar muitos.
Há 10 anos, em meio à euforia em torno da nanotecnologia, alguns a descreviam como a solução de todos os problemas da humanidade. Também a energia nuclear foi apresentada, em meados do século XX, como uma solução para todos os problemas – e nós sabemos o que aconteceu. Qualquer nova tecnologia cria riscos ambientais, sociais e econômicos e isso vale para a nanotecnologia. Portanto, as decisões sobre incentivos à inovação e à ciência que ela demanda têm de ser instruídas por uma análise do equilíbrio entre benefícios e riscos.
Ciência e inovação exigem paixão, ilustrada em um quadro que mostra Pasteur concluindo um experimento enquanto madame Pasteur se prepara para sair. Mas o seu marido estava muito ocupado e não conseguia cuidar da vida social sem ter a resposta que lhe seria dada pelo experimento. Pasteur é um grande exemplo de capacidade de fazer, ao mesmo tempo, criação científica e inovação, salvando vidas. Segundo ele, “não existe uma categoria de ciência que se pode chamar de ciência aplicada. O que existe são ciências e aplicações da ciência, interligadas como uma árvore e seu fruto”. Para entender a frase, lembremos que Pasteur era um bom católico, familiarizado com o Evangelho de São Lucas, onde lemos que a árvore que produz maus frutos não é boa e a que produz bons frutos não é má. Aí estão duas ideias: primeiro, tanto a árvore como os frutos podem ser bons ou maus. Além disso, não somente a árvore dá o fruto, mas o fruto também dá a árvore, isto é, os processos que relacionam ciência e inovação não são lineares, nem unidirecionais.
Por isso mesmo, o Instituto Pasteur, um antigo e sempre moderno templo mundial da ciência, é também titular de 382 pedidos de patentes depositados no USPTO desde 2001. Faz ciência e inovação de primeira e ambas se fertilizam mutuamente, criando uma sustentabilidade que não é observada em outras organizações de pesquisa importantes.
Se quisermos ter inovação, temos de educar para a inovação. Lembro-me com gratidão de pessoas que contribuíram para minha educação, como Ney Galvão da Silva, presidente da Indústria Química Santo Amaro S/A, produtora de tetraciclina, do grupo Laborterápica-Bristol dos anos 1950-1960, em São Paulo. Ele foi o supervisor do meu primeiro estágio, em que fiz um levantamento de informações sobre as penicilinas semissintéticas e oxacilinas. Na nossa primeira conversa, depois de uma semana de estágio, ele quis ver o que eu já fizera e, ao ver os dados que eu tinha coletado, perguntou-me se eu me limitara só a ler artigos. Diante de minha resposta afirmativa, indagou-me sobre as patentes. “Muitas informações sobre isso estão em patentes”, observou, e então fui estudar as patentes. Aprendi isso com ele.
Pawel Krumholz, meu orientador de tese, é outro a quem devo prestar tributo. Dirigente da Orquima S/A, ele produziu cafeína por metilação de teobromina. No Brasil, seria natural produzi-la extraindo-a do café. Mas a pessoa que é ligada e sabe um pouco de química – e ele sabia muito – percebe que dá muito mais certo extrair teobromina de cacau e transformar em cafeína. Ele obteve uma patente sobre separação de terras-raras no USPTO em 1963 e outras na Europa, que demonstram o nível de competência que já tivemos nessa área. Hoje o governo brasileiro tem interesse nisso, mas percebemos quanto tempo foi perdido, por falta de políticas. Precisamos ter políticas.
Termino lembrando de Carmine Taralli, diretor de P&D da Pirelli nos anos 1990. Ele se aplicou a “como fazer para que as empresas, diante de um risco de inovação reduzido, se atrevam a buscar a inovação”. Classificou essa tarefa de maravilhosa, lembrando que gastara toda a sua vida “em inovação e desenvolvimento de novos produtos”. Tive o prazer de trabalhar com ele no desenvolvimento dos isolantes dos cabos elétricos que hoje estão instalados no Eurotúnel e foram criados e produzidos no Brasil.
Volto ao desafio global: garantir alimento, matérias-primas e energia para 9 bilhões de pessoas, em poucas décadas. Nos Estados Unidos esse desafio é traduzido no programa 30/30 do DOE e Usda: 30% de substituição do petróleo em 2030. Isso requer aproximadamente 1 bilhão de toneladas de biomassa por ano. No Brasil, qual é a situação? Aqui, a produção de resíduos de biomassa atingiu em 2010 cerca de 1 bilhão de toneladas, resultado de 30 anos de inovação e que nos coloca, talvez pela primeira vez na história, 18 anos adiante dos Estados Unidos. Outro personagem importante nesse quadro é o eucalipto, hoje valorizado pela excelência do papel e em produção de energia. Seu desenvolvimento para essa finalidade foi feito no Brasil e hoje está sendo transferido para outros países.
Temos um caminho, que pode também ser adequado para outros países na condição do Brasil. Podemos enfrentar o problema global usando a biomassa, mas para isso precisamos ter estratégias, ter atitudes e aí conseguiremos os resultados: nova ciência, novos produtos, processos e mais bens para cada vez mais pessoas, em um quadro sustentável.
Este artigo e os das páginas seguintes resultam de palestras proferidas no primeiro dos sete encontros preparatórios para o Fórum Mundial da Ciência 2013, realizado na sede da FAPESP de 29 a 31 de agosto de 2012.