Levantamento sobre gasto em vários ministérios é da economista Fernanda De Negri, do Ipea; bloqueio de R$ 2,7 bilhões para o setor foi proibido pelo Congresso, mas gestão Jair Bolsonaro ainda não liberou verba
O corte de verbas cria desde problemas pontuais, como a pane da plataforma Lattes — banco de dados com informações de todos os pesquisadores brasileiros, que ficou fora do ar duas semanas neste mês —, até efeitos no longo prazo, como a perda de competitividade da economia. Desde o início do ano passado, a importância da ciência também aumentou com a demanda criada pela pandemia, que envolve estudos sobre testes, remédios e vacinas contra a covid-19, entre outras iniciativas.
Na gestão Jair Bolsonaro, a falta de dinheiro foi agravada pela retenção de parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). O bloqueio foi proibido pelo Congresso, mas cerca de R$ 2,7 bilhões continuam travados.
Segundo o estudo de Fernanda de Negri, o investimento em ciência e tecnologia no governo federal atingiu o pico em 2013. Daquele ano até 2020, os gastos do governo na área recuaram em mais de um terço: 37% em termos reais (descontada a inflação). “Depois de mais de uma década de um ciclo relativamente consistente de ampliação, os investimentos em C&T (…) (chegaram) em 2020 a um nível inferior ao observado em 2009”, diz um trecho. Em 2013, o gasto havia sido de R$ 27,3 bilhões.
Os gastos estão distribuídos por várias pastas e órgãos públicos: desde o Ministério da Defesa até o da Economia, onde estão alocadas instituições como o próprio Ipea e o Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (IBGE). E nem todos esses órgãos foram atingidos da mesma forma. O Ministério da Ciência e Tecnologia (MCTI) foi uma das pastas que concentraram cortes.
Comandado pelo astronauta Marcos Pontes, o ministério é responsável pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), órgão responsável pelo Lattes e por pagar auxílios a pesquisadores, além do Fundo de Ciência. A Capes, outra agência de fomento à pesquisa, é vinculada ao Ministério da Educação (MEC).
“Praticamente toda a pesquisa brasileira realizada em empresas, universidades ou instituições de pesquisa é financiada com os recursos desses três fundos (CNPq, Capes e FNDCT). Mesmo as instituições de pesquisa vinculadas ao MCTI, ou a Fiocruz e a Embrapa, acabam necessitando de recursos adicionais de pesquisa e recorrendo aos editais do FNDCT, bem como a bolsas de pesquisa e formação do CNPq e da CAPES”, diz o texto.
Juntas, as três instituições já responderam por 40% de toda a verba para a ciência na União — hoje, a fatia é de 28%. As instituições dispõem hoje do mesmo valor que controlavam no começo dos anos 2000, quando a quantidade de pesquisadores no Brasil era bem menor que a atual, segundo o levantamento.
“O gasto só não caiu mais porque temos essas duas instituições, a Embrapa e a Fiocruz, cujo investimento não caiu tanto. Só que essas duas tratam das pesquisas realizadas por elas próprias. Não dizem respeito à pesquisa dentro das universidades, nas empresas etc. Se você pegar só os fundos cuja finalidade principal é financiar a pesquisa — FNDCT, Capes e CNPq — o recurso deles caiu para níveis do início dos anos 2000”, disse Fernanda ao Estadão. “Obviamente isso tem impacto muito forte do ponto de vista da formação de cientistas, que você pára de formar; e vai ter impacto grande na nossa capacidade de produção de conhecimento no futuro”, observa a pesquisadora. Procurado pela reportagem, o Ministério da Ciência e Tecnologia não se manifestou.
Dinheiro do fundo é liberado a conta-gotas
Em abril, ao sancionar o Orçamento de 2021, Bolsonaro desrespeitou lei complementar aprovada semanas antes pelo Congresso e bloqueou R$ 5 bilhões do FNDCT. A lei que proíbe o bloqueio de recursos do fundo foi aprovada após intensa pressão da comunidade científica. Até mesmo pesquisas relacionadas à covid-19 foram paralisadas
A verba está sendo liberada aos poucos, o que preocupa os cientistas — a demora pode inviabilizar o uso do dinheiro. Cerca de metade do valor foi colocado à disposição para projetos de pesquisa de empresas privadas, por meio da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), empresa pública ligada ao MCTI. Como a taxa de juros praticada pela Finep é, em geral, mais alta que a de outras linhas de crédito similares, o mais provável é que o dinheiro acabe não sendo usado.
Agora, o governo sinaliza que liberará os R$ 2,7 bilhões restantes em breve. Metade deve ir para projetos não reembolsáveis — bolsas de pesquisa e projetos de universidades — e a outra metade, para organizações sociais (OSs) ligadas ao MCTI.
“O governo está ensaiando liberar o restante. Eles querem liberar 50% para as OSs (organizações sociais) do restante que falta, ou seja, 25% do total, e deixar para as universidades e institutos só 25%”, diz o ex-deputado e ex-ministro da Ciência e Tecnologia Celso Pansera, hoje coordenador executivo da Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento (ICTP).
A fatia destinada às OSs iria para entidades como a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial (Embrapii), o Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), e o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (Cnpem), responsável pelo acelerador de partículas Sirius, em Campinas), entre outras.
Poucos recursos levam a ‘fuga de cérebros’, diz presidente de entidade
“O Brasil de 2021 não cabe no Brasil do início dos anos 2000”, diz o presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), Renato Janine Ribeiro. “Não só porque cresceu a população do País, mas porque cresceu a população de estudantes universitários, que passou de cerca de 3 milhões para 8 milhões. Temos muito mais necessidades e muito mais produção hoje”, diz ele, que é professor da Universidade de São Paulo (USP) e foi ministro da Educação no governo de Dilma Rousseff (PT).
Segundo Ribeiro, a falta de investimento em pesquisa intensifica a “fuga de cérebros”, ou seja, a emigração de brasileiros com alto nível educacional. “Historicamente temos muita pouca ‘fuga de cérebros’, se comparado com a Argentina (…) e com a Índia, nosso parceiro dos Brics (grupo de países emergentes). No Brasil, sempre teve o seguinte: se você consegue emprego numa universidade que pague sua pesquisa, você aguenta as piores dificuldades, mas não vai embora. E agora, as pessoas não estão sequer conseguindo emprego. Por isso estão partindo”, diz.
“Isso significa que a sociedade pagou muita coisa delas, inclusive o mestrado e o doutorado, e a gente entrega esse pessoal pronto, de graça, para os países ricos. O que é uma medida muito estúpida, equivocada. Hoje, os produtos econômicos que têm mais valor são os que têm ciência embutida neles (…). E a gente está transferindo de graça a ciência na cabeça dos nossos cientistas”, diz Ribeiro ao Estadão.
Sem financiamento, agrônomo perdeu chance de pesquisa no exterior
Como vários outros pesquisadores, o agrônomo Lucas Cavalcante da Costa, de 30 anos, já teve de lidar com as consequências da falta de financiamento. Em 2018, ele apresentou projeto à Universidade de Oxford, no Reino Unido, sobre arroz. A ideia era saber como a planta, um dos alimentos-chave da dieta brasileira, reage em um ambiente com alta concentração de gás carbônico. Esta deve ser a realidade global nos próximos anos, com as mudanças climáticas. A pesquisa era parte de seu doutorado na Universidade Federal de Viçosa (MG), e a bolsa seria custeada pelo CNPq.
Seria: mesmo tendo entusiasmado os pesquisadores britânicos e tirado nota máxima em todos os quesitos avaliados pelo CNPq, Lucas acabou sem o financiamento por falta de verbas. “Meu projeto recebeu a avaliação de ‘muito bom’ e ‘excelente’ em todos os quesitos. Mas, no parecer final, o CNPq escreveu que o projeto, apesar de meritório, não poderia ser contemplado por restrições orçamentárias. Foi meio frustrante”, diz ele. “E ainda tive que explicar aos estrangeiros que não ia acontecer por falta da verba.”