Blog Infopetro em 30/06/2014
Por José Vitor Bomtempo
O título desta série destaca uma dimensão central da indústria baseada em biomassa que não podemos perder de vista em nossas análises: é uma indústria em construção, ainda sem definição clara das dimensões estruturais que caracterizam setores mais maduros. As entradas (e saídas) de novos competidores são numerosas e frequentes e os perfis desses competidores são também variados, de startups de base tecnológica a empresas estabelecidas de diversas origens e indústrias. Novas bases de conhecimento, com destaque para a biologia sintética, desafiam esses competidores que, configurando um cenário de corrida tecnológica, são com frequência apoiados por políticas de inovação.
A estruturação dessas políticas é particularmente notável no caso americano através do Department of Energy (DOE) e do Department of Agriculture (USDA) e no caso europeu através de diversas iniciativas da Comissão Europeia. No Brasil, a iniciativa conjunta BNDES/FINEP, conhecida como PAISS, deslanchada a partir de 2010, pode ser vista como a versão brasileira melhor estruturada, até agora, em políticas de inovação para a bioeconomia. Há estudos em andamento sobre a diversificação da indústria química (BNDES) e sobre as tecnologias prioritárias em química renovável (ABDI/CGEE, dentro do Programa Brasil Maior), mas não resultaram ainda em iniciativas concretas de políticas de inovação.
Um dos mecanismos de apoio às empresas envolvidas no desenvolvimento da bioeconomia tem sido a concessão de grants ou subvenções para as etapas de P&D, da bancada a plantas de demonstração, passando pelas plantas-piloto. Esse mecanismo é recente no Brasil e vem sido utilizado pela FINEP para apoio a diversos setores. As empresas brasileiras entretanto manifestam com frequência queixas quanto à relativa modéstia dos recursos destinados e à forma de concessão da subvenção econômica.
Como o mecanismo é recente no Brasil, e sua importância deve crescer para o apoio de setores dinâmicos como a bioeconomia, seria interessante analisar a natureza e o funcionamento da concessão de grants em outros países onde essa forma de apoio está mais desenvolvida e implantada. Numa dissertação de mestrado, Comparação Internacional de Programas de Subvenção à Atividades de PD&I em Biocombustíveis, defendida recentemente na Escola de Química da UFRJ, por Felipe Pereira e orientada por Flavia Alves e por mim, foi feita uma comparação das políticas de subvenção econômica às empresas no Brasil (PAISS), EUA (Biomass Program) e Europa (NER300).
Nesta postagem, vamos discutir os resultados encontrados na comparação dos casos brasileiro e americano.
Em sua dissertação, Felipe Pereira construiu um quadro analítico que permite uma comparação entre os diversos programas de grants. O ponto central dos critérios desenvolvidos foi tratar dos processos praticados pelas agências e não apenas as entradas (recursos aplicados) e saídas (resultados obtidos). Muitos estudos em inovação e políticas públicas colocam o foco nessas dimensões e abordam mais raramente os processos envolvidos na formulação, seleção e acompanhamento dos projetos.
O quadro proposto compara a estrutura geral dos programas e os processos de formulação, seleção e acompanhamento. Na estrutura dos programas foram pesquisadas e comparadas 7 variáveis: orçamento do programa, intensidade do apoio por projeto, tipologia de apoio: cost-sharing x reward for performance, subordinação hierárquica ao governo central, fases de P&D passíveis de apoio, objetivos (explícitos e implícitos) e integração com outros instrumentos de apoio financeiro. No estudo dos processos de formulação, seleção e acompanhamento, 5 variáveis foram pesquisadas e comparadas: nível de aprofundamento tecnológico e nível de envolvimento da comunidade científica (fase de formulação), quesitos classificatórios aplicados e nível de profundidade da avaliação tecnológica (fase de seleção) e foco das rotinas de acompanhamento e avaliação.
Os principais resultados da comparação entre os programas de subvenção americanos e brasileiros para a bioeconomia estão resumidos no quadro abaixo.
Quadro I
Fonte: Quadro adaptado de Pereira, 2013. Comparação internacional de programas de subvenção a atividades de P&D&I em biocombustíveis, dissertação de mestrado, Escola de Química, UFRJ, 2013.
Que diferenças podem ser destacadas entre o Biomass Program (DOE) e o PAISS (subvenção econômica FINEP)? Que lições podem ser tiradas para o aprimoramento dos programas brasileiros de apoio à inovação?
A própria natureza dos programas é distinta. O Biomass Program tem duração indeterminada e tem sido mantido desde a década de 1970. Já a iniciativa do PAISS está ligada à abertura de uma janela de oportunidade, bem delimitada no tempo. Trata-se, portanto, de um programa com duração determinada.
No que se refere ao orçamento dos programas, a discrepância de montantes é considerável. O orçamento anual do Biomass Program tem sido de cerca de US$200 milhões. O PAISS alocou um montante de R$ 200 milhões para as operações de subvenção. O orçamento total do programa PAISS é, entretanto, mais expressivo, se considerarmos os montantes dos demais instrumentos de crédito e de participação acionária.
Uma diferença marcante na estrutura dos programas é a extensão dos apoios oferecidos por projeto. No caso americano, o P&D básico pode ser 100% financiado e as unidades de demonstração podem ser financiadas em até 50% do investimento. O limite de financiamento é de US$ 88 milhões/projeto. No caso do PAISS, as subvenções cobrem apenas despesas de custeio para as etapas de bancada e piloto, podendo atingir 95% para microempresas e 50% para grandes empresas, com o limite de R$ 10 milhões/projeto. Se considerarmos a natureza dos esforços tecnológicos que exige a bioeconomia e o perfil de empresas que têm participado desse desenvolvimento, nota-se que a intensidade do apoio do programa brasileiro pode estar inadequada à natureza da demanda.
Existe uma distinção importante quanto ao tipo de apoio. No caso americano, o apoio envolve o cost sharing (cobertura dos custos do projeto) inicial, mas a continuidade do apoio é condicionada ao desempenho planejado (Reward for performance). No caso brasileiro, o único mecanismo adotado é o de cost sharing.
Do ponto de vista de subordinação à estrutura hierárquica de governo, o Biomass Program é descentralizado e o PAISS/FINEP é centralizado, estando subordinado à instância com missão de promoção à P&D em geral. Os objetivos do programa americano podem ser identificados como explicitamente voltados para disparar uma corrida tecnológica para alcançar as metas do RFS (Renewable Fuel Standard) e estabelecer uma base de inovação americana em bioeconomia. Os objetivos do programa brasileiro são menos explícitos e voltados para a coordenação dos esforços de desenvolvimento já em curso e fomento a oportunidades.
Ao lado dessas diferenças estruturais entre os programas, destacam-se as diferenças nos processos de formulação, seleção e acompanhamento. Podem ser identificadas cinco variáveis relacionadas a esses processos – duas na fase de formulação, duas na fase de seleção e uma na fase de acompanhamento – que trazem diferenças importantes.
A primeira está relacionada ao nível de aprofundamento tecnológico da fase de formulação do programa. No caso brasileiro, o nível deve ser considerado baixo já que foi voltado para o preenchimento de lacunas. No caso americano, os processos implementados levam a um grau elevado de aprofundamento tecnológico ainda na fase de formulação. Exploram-se recursos de modelagem de processos e definição de design cases de modo a identificar gargalos tecnológicos a serem superados no nível básico das tecnologias a serem desenvolvidas.
Ainda na fase de formulação, o nível de envolvimento da comunidade científica é nitidamente distinto. No caso americano há a mobilização da equipe técnica do NREL para a construção dos design cases e participação nas RI (request of information). O envolvimento da academia no caso brasileiro é baixo e quase sempre realizado na forma de consultas informais.
Na fase de seleção das propostas, o Biomass Program utiliza critérios que podem ser classificados de objetivos. São critérios quantitativos e orientados pelos design cases e pelo pacote tecnológico a ser desenvolvido. Os critérios utilizados no caso brasileiro são, de certa forma, subjetivos e, em geral, qualitativos. São orientados pelo grau de inovação e risco tecnológico, pelas externalidades e grau de nacionalização da tecnologia.
Ainda na fase de seleção, uma variável de grande importância é a relacionada ao nível de profundidade da avaliação tecnológica. O Biomass Program apresenta um nível que pode ser classificado de médio nesse quesito. A equipe é composta por especialistas, muitos dos quais egressos de empresas de engenharia, mas não pode contar com suporte do NREL, impedido de participar da avaliação já que potencialmente é solicitante de pedidos de apoio. Não há a condução de investigações de due diligence tecnológica, mesmo em projetos de maior porte. Uma vantagem organizacional do Biomass Program é a dedicação integral de seus técnicos aos desafios tecnológicos ligados ao seu setor fim – bioenergia – não compartilhando esforços com demandas de outros setores, como acontece no caso brasileiro.
No caso do PAISS, pode-se dizer que a auditoria tecnológica é virtualmente inexistente. A apreciação dos projetos considera de forma geral as capacitações gerenciais, financeiras e o histórico de atividades de pesquisa e desenvolvimento do postulante. A ênfase foi mais na estratégia do negócio do que no conteúdo de engenharia dos projetos apresentados. Isso de certa forma é um reflexo natural dos objetivos do programa, que não pretendia disparar uma corrida tecnológica.
Por fim, os programas apresentam diferenças no foco das rotinas de acompanhamento e avaliação. No caso americano, a equipe do Biomass Program atua como cogestora do projeto apoiado, participando da sua condução e das decisões mais importantes. Além disso, deve se preparar para tomar a decisão de continuidade ou não do apoio, o que é facilitado pelas metas claras de desempenho que são definidas para cada projeto. No caso brasileiro, o acompanhamento é voltado para o monitoramento do plano de trabalho. Não há interferência nas decisões técnicas do projeto.
Sem dúvida, o PAISS representou um avanço na forma de condução do incentivo público a atividades de P&D em biocombustíveis avançados e, por extensão, na bioeconomia no Brasil. A coordenação entre as duas principais agências federais de fomento – FINEP e BNDES, a integração de diversos instrumentos financeiros em um único programa e a mobilização orçamentária com foco temático permitiram alavancar investimento privado em P&D no setor. Mas, como a análise comparativa dos programas americanos e brasileiros sugere, existem elementos na experiência internacional capazes de conferir maior efetividade aos apoios à inovação, mas que ainda são pouco exploradas pela política pública brasileira.
Três lições podem ser destacadas como análise e sugestão para o aprimoramento dos programas brasileiros de incentivo ao P&D privado em bioeconomia. O primeiro deles é a incorporação de maior conteúdo de engenharia e conhecimento do desafio tecnológico a ser atacado na formulação dos programas. A atual estruturação das equipes responsáveis pela formulação não facilita essa incorporação. A experiência internacional sugere uma cooperação sistemática e formal com a comunidade de consultores externos e institutos de pesquisa, o que fica distante do que é praticado no Brasil. Nos EUA, o NREL participa ativamente do processo de formulação do Biomass Program. No Brasil, uma aproximação institucional entre os agentes de fomento e institutos nacionais de pesquisa, como a Embrapa e o Centro de Tecnologia do Bioetanol (CTBE), poderia ser explorada.
O segundo ponto seria considerar o uso de mecanismos de recompensa, de forma complementar ao mecanismo de cost sharing atualmente o único utilizado no Brasil. Entretanto, para condicionar a continuidade do apoio ao desempenho será necessário um mapeamento tecnológico rigoroso para a pré-definição de indicadores de desempenho e metas. Voltamos ao primeiro ponto: torna-se necessário qualificar os programas públicos com disciplinas de engenharia e conhecimento tecnológico específico.
Por fim, a terceira lição refere-se à origem dos programas. Enquanto os programas americanos e europeus respondem a um planejamento estratégico definido por políticas públicas previamente formuladas e em execução, no caso brasileiro, não se identifica um plano estratégico nacional de médio prazo que tenha orientado ou mesmo motivado a formulação do PAISS. Talvez não seja possível esperar uma melhor formulação dos programas, uma melhor seleção e um melhor acompanhamento dos projetos, sem que um plano estruturado em torno da bioeconomia, e de outras agendas de inovação, seja claramente formulado. Enquanto isso, iniciativas como o PAISS, não derivadas de planos estratégicos de longo prazo, são certamente bem vindas. O aperfeiçoamento do instrumento de subvenção à luz das melhores práticas internacionais poderia ficar como um objetivo permanente nas próximas iniciativas de apoio ao P&D privado.