Revista Fapesp, 09/2016
Em 2015, os pesquisadores do laboratório de doenças genéticas ligadas à hemoglobina da Faculdade de Ciências Médicas (FCM), no segundo andar do Hospital de Clínicas (HC) da Unicamp, lutaram para descobrir a origem da grave anemia de uma criança de 1 ano de idade encaminhada por médicos do Rio de Janeiro. Os testes iniciais não indicaram nenhuma anormalidade. “Foi um caso muito difícil”, conta Maria de Fátima Sonati, coordenadora do laboratório. “Quase desistimos.”
Quatro meses depois dos primeiros testes, a equipe de Campinas encontrou no DNA da criança uma mutação nos genes das cadeias alfa da hemoglobina, proteína contida nas hemácias que transporta oxigênio para os tecidos. A hemoglobina mutante era muito instável e induzia à destruição as hemácias mais jovens, produzidas na medula óssea.
O bebê, que depende de transfusão de sangue em média a cada três semanas, poderá ser curado da doença quando receber células-tronco da medula óssea dos irmãos, segundo Maria de Fátima. “Foi a primeira descrição no mundo de um paciente com um quadro tão grave de talassemia, uma forma de anemia hereditária frequente em povos do Mediterrâneo, causada por mutação estrutural em dois dos quatro genes alfa.”
A história desse laboratório – criado em 1979 pelo médico Fernando Ferreira Costa, então recém-saído da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP) da Universidade de São Paulo (USP) – registra a identificação de 15 novas variantes da hemoglobina humana e de outras 70 formas raras, algumas com um único caso descrito no mundo. Essas descobertas são resultado da análise de quase 400 mil amostras de sangue de pacientes com suspeita clínica de alterações genéticas relacionadas à hemoglobina, encaminhados por médicos de todo o Brasil e de outros países da América Latina. Há dois grupos principais: as talassemias, que acometem cerca de 1% dos descendentes de povos mediterrâneos (no Sudeste brasileiro, principalmente os italianos), e as chamadas hemoglobinopatias estruturais, entre as quais a principal é a anemia falciforme, forma grave de anemia herdada – seus portadores são geralmente assintomáticos e a mutação do gene que a causa atinge uma prevalência entre 6% e 8% na população nacional de afrodescendentes.
O laboratório do HC investiga em média 300 casos por mês por meio de métodos complementares de análise (hematológicos, bioquímicos, proteicos e moleculares). “Nunca liberamos o diagnóstico com base apenas em um único método. Usamos pelo menos dois, já que existem mais de mil variantes estruturais da hemoglobina, muitas delas com comportamentos bioquímicos muito similares”, explica Maria de Fátima, que começou no laboratório em 1981 e fez mestrado e doutorado com Costa e pós-doutorado na Universidade de Londres.
A bioquímica Susan Jorge, no laboratório desde a iniciação científica e agora no pós-doutorado, desenvolve uma nova frente de pesquisa e de análise. Ela se propõe a avaliar as alterações de função das hemoglobinas mutadas por meio de métodos biofísicos, em colaboração com equipes do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, próximo à universidade, e da Universidade de Buenos Aires, Argentina.
Os possíveis diagnósticos e tratamentos dos casos analisados no laboratório do HC são discutidos em conjunto com as equipes de Costa e de Sara Saad. Ambas são do Centro de Hematologia e Hemoterapia (Hemocentro), próximo à Faculdade de Ciências Médicas, de onde provém boa parte das amostras de sangue. Criado em 1985, o Hemocentro atende por ano cerca de 25 mil pessoas e realiza 50 transplantes de medula óssea.
Tratamentos
No Hemocentro desde 1990, quando voltou da temporada de dois anos na Universidade Yale, Estados Unidos, Costa comemora a modernização dos métodos de trabalho: “Era muito difícil fazer diagnóstico clínico, laboratorial e molecular”. Reitor da universidade de 2009 a 2013, Costa trabalha com Nicola Conran Zorzetto, pesquisadora de seu grupo da Unicamp, em uma nova proposta terapêutica para crises agudas de anemia, de tratamento difícil. A nova abordagem consiste no uso da hidroxiureia, medicamento adotado no controle da anemia crônica, mas interrompido nas situações críticas.
Em seu doutorado, sob orientação de Nicola, a bióloga Camila Almeida verificou que, em camundongos transgênicos com anemia falciforme, a hidroxiureia, por meio de mecanismos bioquímicos que ainda não haviam sido observados, poderia induzir a produção de óxido nítrico e reverter os processos inflamatórios que caracterizam a anemia falciforme. Era uma indicação de que a hidroxiureia poderia ser usada para reverter a crise aguda. Em outro trabalho, também publicado na revista Blood, Camila mostrou que a hidroxiureia também poderia reverter os efeitos inflamatórios da hemólise, a destruição das hemácias, verificados na malária, na sepse e em outras doenças.
Os trabalhos abrem caminho para testes em seres humanos. Segundo Nicola, essa estratégia terapêutica deve começar a ser avaliada nos próximos meses em pacientes com anemia falciforme que sofrem de crises agudas dolorosas, em colaboração com equipes do Rio de Janeiro. Se der certo, segundo Costa, a substância poderia ser indicada para deter a perda de glóbulos vermelhos verificada também em malária, em transfusões de sangue ou em infecção generalizada.
A equipe da médica Sara Saad, pesquisadora do Hemocentro, estuda anemias e outras doenças do sangue, as chamadas mielodisplasias. Resultantes de alterações nas células-tronco da medula óssea, essas doenças geralmente evoluem para leucemias agudas. Também pode ocorrer o oposto: medicamentos utilizados no tratamento de câncer podem danificar o material genético (DNA) das células e levar ao desenvolvimento de mielodisplasia. “Desenvolvemos um protocolo de terapia celular com o uso de células dendríticas do próprio paciente para o tratamento da mielodisplasia com alto risco de virar câncer. Também delineamos um estudo clínico com uso de produtos naturais em pacientes de baixo risco”, conta Sara.
“Por virem de grupos mais experientes, Fernando e Sara valorizaram e reforçaram a pesquisa e a cooperação internacional no Hemocentro da Unicamp. Com eles, fazer mestrado e doutorado, formar pessoas e ter um laboratório de vanguarda tornou-se obrigatório”, comenta Joyce Bizzacchi, pesquisadora do Hemocentro que investiga as causas e possíveis tratamentos de problemas ligados à coagulação do sangue.