IFSC-USP, em 09/09/2013
Cristalografia de proteínas
Você certamente não ouviu falar sobre o Glossoscolex paulistus, correto? Mas, se perguntar a algum agricultor paulista, especialmente os da região de Rio Claro e Piracicaba, estes, provavelmente, conhecerão o termo. Ou, caso não conheçam, você pode citar uma definição que representa o “palavrão” acima: uma espécie de minhoca gigante, mais conhecida como “minhocoçu”.
Brincadeiras à parte, o Glossoscolex paulistus, embora considerado um verme endêmico, já conta com a proteção de órgãos ambientais, uma vez que é uma espécie ameaçada de extinção.
A minhoca em questão, no entanto, possui uma particularidade interessante: uma hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio) de estrutura extremamente complexa. Para se ter ideia dessa complexidade, a hemoglobina humana é composta por quatro subunidades, enquanto a da Glossoscolex paulistus possui 180. Essas hemoglobinas são sistemas moleculares enormes com dimensões comparadas aos ribossomos.
Tal fato chamou atenção de José Fernando Ruggiero Bachega, que na época era doutorando do Instituto de Física de São Carlos (IFSC/USP), e sob orientação do docente do IFSC, Richard Charles Garratt*, passou a realizar estudos relacionados à estrutura molecular deste complexo de proteínas do Glossoscolex paulistus, com o objetivo final de caracterizar sua estrutura. “Em toda literatura científica, só se havia desvendado a estrutura da hemoglobina de um único representante da classe dos oligoquetas, e sempre é interessante ter a caracterização de mais de um tipo”, conta José Fernando.
A resolução da estrutura cristalográfica desses sistemas é uma tarefa complicada. Os primeiros cristais de proteínas reportados na literatura tratavam-se justamente da hemoglobina de um oligoqueta (Lumbricus terrestris). Esses cristais foram reportados na segunda metade do século XIX, quando a cristalografia de proteínas ainda não havia nascido. No entanto, sua estrutura cristalográfica só foi resolvida no ano 2000, 40 anos depois de Perutz e Kendrew resolverem as primeiras estruturas cristalográficas de proteínas (que, ironicamente, referem-se à hemoglobina e mioglobina).
Depois de alguns anos, hemoglobinas de diversas espécies tiveram suas estruturas resolvidas, e o ineditismo do estudo de José Fernando que, inclusive, lhe rendeu o título de doutor, foi justamente na revelação da estrutura da complexa hemoglobina do Glossoscolex paulistus, nunca feita antes. “Ao longo dessa pesquisa, agregamos outras espécies de oligoquetas, que sabíamos serem bem estudadas na literatura e que possuem interesse comercial para produção de húmus ou descontaminação de solo”, conta José Fernando.
Desvendar a estrutura da hemoglobina doGlossoscolex paulistus, no entanto, não teve como objetivo relacioná-la ao uso comercial, onde essas hemoglobinas extracelulares de oligoquetas são apontadas com possíveis candidatas a substituintes para sangue humano. Porém, a caracterização estrutural e biofísica realizada neste trabalho representa uma grande contribuição no entendimento de como esses complexos carreadores de oxigeno se comportam.
Do conhecimento científico ao intercâmbio intelectual
Durante os seis anos em que trabalhou com técnicas de cristalografia e caracterização de proteínas, que foram essenciais para conclusão bem sucedida da pesquisa acima, José Fernando adquiriu um ótimo know-how sobre tais técnicas. Por esse motivo, voou para o Peru, mais especificamente para a Universidad Nacional Pedro Ruiz Gallo (UNPRG), em julho passado, para transmitir a outros pesquisadores seus conhecimentos adquiridos no IFSC, relacionados a essa metodologia. “Durante um curso que ministrou na UNPRG, o professor Richard notou que naquela universidade, assim como no Peru, como um todo, não havia o registro de nenhuma proteína cristalizada nem de nenhuma pessoa que tivesse o conhecimento de como cristalizar uma proteína”, relembra o pesquisador.
Diante desse cenário, José Fernando montou um “mini laboratório”** e o levou ao Centro Geoeconômico da UNPRG com a missão de cristalizar a primeira proteína do Peru. “No laboratório de cristalografia do IFSC, cristalizar proteínas é algo comum! Fazemos a cristalografia de dezenas de proteínas, por ano, pois nossa infraestrutura é muito boa e não deixa a desejar para a de nenhum país de primeiro mundo. No Peru, por outro lado, a realidade é muito diferente, pois a universidade conta com poucos recursos e grandes problemas de infraestrutura”.
Foram duas semanas de trabalho intenso para conseguir cristalizar a hemoglobina da Eisenia foetida (espécie de minhoca usada comercialmente para a produção de humos) e os primeiros cristais foram visualizados já no final da primeira semana. “A partir disso, otimizamos o protocolo para obtenção desses cristais e discutimos outros possíveis projetos que poderiam ser concretizados a partir da técnica recém ensinada”, relembra o pesquisador.
De acordo com José Fernando, embora os experimentos tenham sido bem sucedidos e o Peru tenha conseguido cristalizar sua primeira proteína, a empolgação dos participantes foi o maior destaque da experiência vivida. “Quando conseguimos os primeiros cristais, o professor Pedro Chimoy, que tem parceria de pesquisa com o IFSC, organizou um evento para que eu reportasse os resultados conseguidos até aquele momento. Esse evento foi num feriado e, mesmo assim, os alunos compareceram massivamente”, relembra.
José Fernando afirma que, estando no Peru, pôde perceber que esse tipo de intercâmbio é algo importante e conta que muitos de seus aprendizes querem vir ao Brasil fazer pós-graduação. “O professor Richard tem dedicado atenção especial a esses estudantes e já alocou muitos alunos em estágios de curta duração, não somente aqui no IFSC, mas em outras Unidades da USP ou da UFSCar. Em nosso laboratório já tivemos representantes de diversos países da América Latina”.
Já sobre o maior aprendizado que teve durante essa experiência, José Fernando não pensa duas vezes para responder: “Temos que sonhar que é possível. Esse é o maior estímulo para que qualquer pesquisa ou trabalho possa ser concretizado”, conclui.
* colaboraram diretamente com essa pesquisa o docente do Instituto de Química de São Carlos (IQSC), Marcel Tabak, o docente do IFSC, Eduardo Horjales Reboredo, o pesquisador do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), Marcelo Carazzolle, o técnico de laboratório do IFSC, Humberto Muniz e o doutorando Fernando Vasconcelos Maluf.
**equipamentos antigos e sem uso nos laboratórios do IFSC além de alguns reagentes