Revista Pesquisa FAPESP, em Julho/2013
No subsolo do Museu de Ciências e Tecnologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), em Porto Alegre, funciona uma agência de encontros um tanto incomum. Todo fim de tarde alguns casais – trios, na verdade – são conduzidos a uma sala silenciosa onde, às escuras, passam algumas horas se conhecendo a certa distância. Pela manhã, quando as luzes são acesas e o contato físico é liberado, os participantes iniciam um namoro de apenas 15 minutos que costuma deixar muitos descendentes. Um cartaz afixado no lado de fora da porta mantém afastados os curiosos: “Não entre: acasalamento em andamento”. Nesse laboratório da PUC-RS, a bióloga Monica Ryff Moreira Vianna, seguindo estratégias que ela otimizou, controla a reprodução de um pequeno peixe listrado de prata e negro conhecido como zebrafish ou paulistinha, cada vez mais usado nas pesquisas em neurociências no mundo e, agora, no Brasil.
“Em alguns testes, o zebrafish pode funcionar como uma alternativa ao uso de roedores; em outros, pode oferecer informação complementar”, afirma o biólogo Denis Rosemberg, que recentemente participou da instalação de um biotério de zebrafish na Universidade Comunitária da Região de Chapecó (Unochapecó), em Santa Catarina. Ele começou a trabalhar com o peixe no Laboratório de Neuroquímica e Psicofarmacologia, da farmacologista Carla Bonan, durante a graduação na PUC-RS. Ele investigou os efeitos danosos do álcool sobre o cérebro e demonstrou a ação neuroprotetora da taurina, naturalmente produzida pelo organismo e encontrada em bebidas energéticas, quando migrou para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Em Santa Catarina, Rosemberg e o farmacologista Angelo Piato começam agora a usar o peixe para investigar os efeitos do estresse no sistema nervoso central e no comportamento. Esse, aliás, é um dos casos em que o zebrafish (Danio rerio) pode oferecer vantagens sobre os roedores. É que no peixe o hormônio que controla o estresse é o cortisol, o mesmo que nos seres humanos é liberado por glândulas situadas sobre os rins em situações reais ou imaginárias de ameaça à vida. Nos roedores, o hormônio produzido nessas situações é a corticosterona, que ocorre em concentrações muito baixas no organismo humano.
Na UFRGS, o grupo do biólogo Diogo Losch de Oliveira conseguiu dar um passo além. Em um trabalho publicado no início deste ano na revista PLoS One, ele e seu aluno de mestrado Ben Hur Mussulini haviam descrito detalhadamente as alterações comportamentais que caracterizam os estágios epilépticos no zebrafish adulto. “Na literatura científica só havia descrições detalhadas para o modelo em larvas, que apresentam um repertório comportamental mais restrito”, diz Losch.
Mais recentemente seu grupo começou a testar os primeiros de um grupo de 30 compostos desenvolvidos em parceria com Grace Grosmann, da Faculdade de Farmácia da UFRGS. Esses compostos tentam explorar uma via bioquímica distinta das que são alvo dos medicamentos atualmente disponíveis, incapazes de controlar cerca de 30% dos casos de epilepsia. Dos três compostos testados, apenas um se mostrou capaz de reduzir a intensidade das crises e deve seguir para outras fases de avaliação.
Estudos internacionais, a propósito, consideram o zebrafish uma ferramenta bastante promissora para a análise e seleção de compostos candidatos a medicamentos. Com esse peixe, espera-se acelerar e baratear o processo. Uma das vantagens é que seu ciclo de vida é rápido – em quatro dias vários dos seus órgãos estão formados – e as larvas, que nascem às centenas a cada postura, com uns poucos milímetros de comprimento, podem ser acomodadas em vários poços de teste com doses baixíssimas de compostos químicos. Com essa seleção, imagina-se ser possível reduzir o número de moléculas que seguiriam para as fases seguintes, de experimentos com roedores. “Com o zebrafish é possível testar em meses e com alguns milhares de dólares o que levaria anos para ser feito com roedores e custaria milhões”, comenta o bioquímico Diogo Onofre Souza, coordenador do Instituto Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação de Excitoxocidade e Neuroproteção, onde são desenvolvidas as pesquisas com zebrafish na UFRGS. No exterior, algumas indústrias de medicamentos já começam a adotá-lo em sua linha de testes.
Pioneiros
Nativo do sudoeste da Ásia, onde é encontrado em rios calmos e rasos e nas plantações alagadas de arroz e juta, esse peixe chegou aos laboratórios de pesquisa no final dos anos 1960, com o biólogo norte-americano George Streisinger, da Universidade do Oregon. Ele trabalhou sozinho por uma década para selecionar linhagens que permitissem entender como defeitos em diferentes genes afetavam o desenvolvimento. Seu esforço só conseguiu reduzir o ceticismo dos colegas em 1981, quando publicou um artigo na revista Nature apresentando o modelo consolidado. Nos anos seguintes, o número de artigos científicos que usavam o peixe como modelo biológico cresceu aceleradamente, em especial nos estudos de genética e desenvolvimento, e só na última década o zebrafish chegou à neurociência.
“O zebrafish começa a preencher uma lacuna que existia entre os modelos animais para o estudo de doenças humanas”, diz o neurofisiologista Luiz Eugenio Mello, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que estuda alterações no sistema nervoso central, entre elas as causadas pela epilepsia, usando ratos como modelo biológico. Mello lembra que um axioma da ciência diz que o melhor modelo para investigar uma coisa é a própria coisa. De acordo com esse raciocínio, o ideal para o estudo das doenças humanas seriam os próprios seres humanos. Mas isso raramente é possível. “Na maioria das vezes há restrições éticas e limitações de tempo, espaço e custo para realizar as pesquisas”, afirma. “Por isso são necessários vários modelos experimentais, dos mais simples aos mais complexos, para compreender a origem de alguns problemas.”
Quando não se pode investigar um problema no próprio ser humano, a medicina e a biologia adotam uma espécie de escala preferencial de modelos, em que são levados em conta fatores como a semelhança evolutiva, anatômica, fisiológica e genética. Segundo esse sistema, os animais que permitiriam extrapolar os resultados com mais segurança para as pessoas seriam os outros primatas, como o chimpanzé, cujo uso em pesquisa é proibido no Brasil e vem sendo banido nos Estados Unidos, e outros macacos. “Só trabalha com primata quem dispõe de muita verba e muito espaço”, comenta o biólogo molecular João Bosco Pesquero, também da Unifesp, criador de uma das primeiras linhagens brasileiras de camundongos transgênicos.“Por isso, muita gente opta pelos roedores, que são mamíferos como os seres humanos”, diz.
Diante de dificuldades técnicas que impedem o trabalho com roedores, o que às vezes ocorre na genética – por exemplo, só há bem pouco tempo se começou a conseguir a produzir ratos transgênicos –, a saída é trabalhar com modelos evolutivamente mais distantes dos seres humanos, mas mais fáceis de manipular, como as drosófilas. E mais recentemente com o zebrafish.
O mais importante, porém, é que, do ponto de vista evolutivo, o zebrafish é mais próximo dos seres humanos do que as drosófilas, há quase um século usadas como organismo modelo em genética. O genoma do zebrafish, concluído no início deste ano, indica que 70% de seus 26 mil genes são semelhantes aos genes humanos – essa similaridade é menor com a drosófila e maior com camundongos e ratos, que serviram de base para muito do que se conhece de fisiologia humana.
“Historicamente as pesquisas em neurociências usam os roedores como modelo biológico, mas esse cenário começa a mudar”, conta Monica, que também integra a diretoria da Rede Latino-americana de Zebrafish (Lazen). Esse consórcio reúne pesquisadores de sete países que usam o peixe em seus estudos e oferece treinamento para aqueles, em geral em início de carreira, interessados em adotar o zebrafish como modelo experimental. Dos 39 grupos que integram a rede, 11 são brasileiros e quase metade está no Rio Grande do Sul.
A produção científica nacional utilizando o zebrafish, que inexistia há pouco mais de uma década, vem crescendo de modo acelerado nos últimos anos, num ritmo maior do que no restante do mundo. A bióloga Luciana Calabró, especialista em cientometria e integrante de um dos grupos que realizam estudos com o paulistinha na UFRGS, chegou a essa conclusão em um levantamento recente realizado em uma das maiores bases internacionais de artigos científicos, a Scopus. “A produção brasileira saiu de 2 artigos por ano em 1999 para 36 em 2012, quando passou a representar cerca de 2% dos trabalhos com zebrafish publicados no mundo”, conta.
A produção nacional com esse peixe ainda é modesta ante a internacional, que soma quase 2 mil artigos por ano nos últimos tempos. Mas vem conseguindo se destacar nas neurociências. “O zebrafish é um modelo novo nessa área e a comunidade que trabalha com ele ainda é pequena”, conta Monica.
No Brasil
Os primeiros trabalhos com esse peixe feitos no Brasil saíram do laboratório da pesquisadora Rosana Mattioli, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no interior de São Paulo. Naquela época o zebrafish começava a ser usado nas pesquisas em neurociências, mas o comportamento natural da espécie ainda era pouco conhecido. Rosana, então, realizou uma série de experimentos simples que ajudou a identificar a preferência do peixe por viver em ambientes escuros. Ela colocava os exemplares do zebrafish em um aquário pintado de duas cores – metade preto e metade branco – e media o tempo que passavam em cada uma das partes. Assim, observou que eles ficavam a maior parte do tempo (cerca de 80%) no lado negro. Viu também que, uma vez colocados na parte clara, eles rapidamente nadavam para a parte escura. Esse trabalho, publicado em 1999 no Brazilian Journal of Medical and Biological Research, começou a estabelecer a base de um importante teste de ansiedade, aprimorado em seguida por ela e outros pesquisadores e hoje utilizado para avaliar o efeito de compostos que combatem a depressão e a ansiedade.
Ansiedade
Ao ver esse trabalho, o psicólogo Amauri Gouveia Junior, então na Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Bauru, notou uma grande semelhança entre o teste do claro-escuro em zebrafish e um experimento que avalia o nível de ansiedade em roedores. Nesse teste, o roedor é colocado em uma plataforma em X a cerca de 60 centímetros do chão. Em dois dos braços, o espaço para caminhar é protegido por paredes, enquanto nos outros dois é aberto. Uma vez no labirinto, os ratos, curiosos, apresentam a tendência de explorá-lo. Mas passam a evitar a parte aberta. Essa ansiedade resulta de um conflito entre a curiosidade e o medo. “O tempo que os peixes passavam no lado escuro era muito semelhante àquele que os roedores ficavam na parte protegida do labirinto”, conta Gouveia. “Por isso imaginei que os dois testes pudessem medir a ansiedade em animais diferentes.” Desde então, ele aplicou o teste de claro-escuro a 12 espécies de peixe, o zebrafish entre eles, para avaliar ansiedade em peixes. “É um dos testes mais adotados hoje em laboratórios de estudos de peixe no mundo todo”, conta Gouveia, hoje pesquisador na Universidade Federal do Pará.
A fase seguinte é testar compostos que interferem nesse comportamento para tentar descobrir como eles o alteram. Com alguns desses testes padronizados, os pesquisadores brasileiros já identificam alterações químicas e celulares no cérebro, provocadas por crises de epilepsia ou por compostos que controlam a depressão e a ansiedade. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde instalou um laboratório dezebrafish há dois anos, a geneticista Cláudia Maurer-Morelli e sua aluna de mestrado Patrícia Barbalho viram que os níveis de uma molécula inflamatória, a interleucina 1-beta, aumentaram logo após uma crise epiléptica induzida. As crises também elevam a produção e a atividade do fator neurotrófico derivado do cérebro (BDNF), uma proteína que em humanos está alterada na epilepsia, como mostraram os resultados publicados por Fernanda Reis-Pinto em 2012 no Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology. Numa linha de pesquisa em fase inicial, Cláudia planeja produzir peixes com alterações genéticas encontradas em pessoas com epilepsia para investigar o papel dessas mutações na doença. O trabalho integra o Instituto Brasileiro de Neurociências e Neurotecnologia, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão financiados pela FAPESP, coordenado por Fernando Cendes.
Embora os primeiros trabalhos com zebrafish tenham sido feitos em São Paulo, cerca de metade dos artigos brasileiros dos últimos anos é de equipes do Rio Grande do Sul, boa parte em neurociências. Segundo Monica Vianna, uma razão histórica explica a concentração dos trabalhos brasileiros com paulistinha em neurociências. Tanto ela quanto Carla Bonan, da PUC-RS, uma das primeiras a instalar um laboratório dezebrafish no Brasil, haviam feito parte de seu treinamento no grupo de Iván Izquierdo na UFRGS, um dos principais estudiosos da memória no mundo. Depois de trabalhar com roedores no mestrado e no doutorado, Carla e Monica decidiram investir nozebrafish. Nos últimos anos, Carla mostrou que nesses peixes os níveis de algumas moléculas que atuam na comunicação entre as células cerebrais – o trifosfato de adenosina e um de seus componentes, a adenosina – desempenham um papel protetor contra a epilepsia, o estresse e a neurotoxicidade induzida por metais.
Reprodução
Na PUC-RS, Monica e sua equipe trabalharam meses até chegarem à estratégia mais eficiente de promover o acasalamento dos peixes no Laboratório de Biologia e Desenvolvimento do Sistema Nervoso. Ela só conseguiu aumentar a taxa reprodutiva quando reuniu os participantes em grupos de três (uma fêmea e dois machos) e os manteve separados por uma divisória transparente – machos de um lado e fêmeas do outro – durante toda uma noite antes que pudessem finalmente ter contato. “Se não os separo, cada fêmea produz menos de uma dezena de ovos”, conta a bióloga. Já com o isolamento e as 12 horas de namoro a distância, esse número pode aumentar para cerca de 200. Lá ocorrem cerca de dez acasalamentos por dia e nascem, em média, 2 mil filhotes por mês. Em uma manhã excepcionalmente produtiva de maio deste ano, Monica e sua equipe passaram horas recolhendo um a um, com uma pipeta, os cerca de 1.800 embriões que resultaram de um único acasalamento de algumas dezenas de trios de zebrafish, que ela vem usando para investigar a bioquímica da memória e de doenças neurodegenerativas como o mal de Alzheimer.
Com a expectativa de que a demanda por exemplares do peixe possa crescer nos próximos anos, os grupos de Monica, Carla e os colegas que compartilham o biotério da PUC-RS trabalham na sua ampliação. É que os 5 mil peixes mantidos ali hoje são suficientes apenas para suprir os estudos conduzidos por eles e alguns colaboradores. A meta é tornar esses laboratórios um dos principais fornecedores desse zebrafish para pesquisa no Brasil, ao lado do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, onde a equipe do biólogo José Xavier Neto instalou no ano passado um biotério para produzir zebrafish com alterações genéticas para o estudo do desenvolvimento de vertebrados. Comparando o desenvolvimento embrionário de peixes, galinhas e camundongos, a equipe de Xavier começou a elucidar nos últimos anos o papel de alguns fatores envolvidos na diferenciação do coração dos vertebrados e no desenvolvimento de neurônios sensoriais.
Uma das razões para aumentar a produção do peixe é que há um potencial mercado. A Lei Arouca, que regulamenta o uso de animais em pesquisa, determina que a partir de 2014 sejam usados exemplares de origem, qualidade e uniformidade certificadas. “Em princípio”, diz Monica, “não será mais possível fazer pesquisa com peixes comprados em lojas de animais”.
Artigos científicos
MUSSULINI, B.H. et al. Seizures Induced by Pentylenetetrazole in the adult zebrafish: a detailed behavioral characterization. PLos One. v. 8. Jan. 2013.
REIS-PINTO, F. C. et al. Análise temporal dos transcritos dos genes bdnf e ntrk2 em cérebro de zebrafish induzido à crise epiléptica por pentilenotetrazol. Journal of Epilepsy and Clinical Neurophysiology. v. 18, n. 14, p. 107-13. 2012.
CASTILLO, H. A. et al. Insights into the organization of dorsal spinal cord pathways from an evolutionarily conserved raldh2 intronic enhancer. Development. v. 137, p. 507-18. 2010.