22/02/2009 – Revista Metrópole, Correio Popular
Na ativa: de ordenhadores de vacas a fotógrafos de átomos, não faltam candidatos dispostos a abraçar carreiras fora do comum
Longe do calor dos trópicos, moças manuseiam alimentos e flores, imersas em câmaras frias. Um motorneiro pilota um bonde num caminho percorrido quase de olhos fechados, de tão certo, enquanto duas irmãs, em gestos rápidos, transformam sinais gráficos em leitura do closed caption da TV. Num sítio, não muito longe da cidade, um homem alinha vacas para a ordenha e outro, em microscópio potente, segue sua rotina de registrar átomos em imagem. E todos, sem exceção, têm um traço que os iguala e distingue: ocupam profissões incomuns ou quase em vias de extinção.
Antonio Donizete Praxedes vem de uma família de sitiantes. “É a quarta geração”, diz, orgulhoso, uma vez que inicia o sobrinho, Caio Fratini, de 13 anos, na mesma atividade. O menino, em férias escolares, adora estar no sítio, apesar de descobrir a dor ao ordenhar vacas. “Dói um pouco o braço.” Já é dono de 17 cabeças de gado. “Aqui é gostoso”, diz. Fratini mora com a mãe, em Sousas. “Quando estou em casa, fico jogando o dia inteiro. Não tem nada para fazer”, compara.
Quando a noite quase adormece no dia, às 4h30, Antonio Donizete Praxedes está na lida para tirar leite em seu sítio, em Joaquim Egídio. Três horas depois, o trabalho está pronto. E o mais curioso: cada animal tem nome próprio que, em geral, faz uma referência ao seu dono. Cabeção é uma das vacas de Caio. Brincadeiras à parte, a rotina não é fácil. “É uma profissão que está acabando”, atesta Praxedes. E explica a razão: “O incentivo é muito pouco e o custo é muito alto.”
O sitiante conta que no campo, se quiser, tem atividade para preencher as 24 horas do dia. “Se for ficar procurando, não paro”. O corpo é que não aguenta. Depois do almoço é costume fazer a sesta. Antes de exercer a atividade, Praxedes ajudava o avô, Benedito, em suas horas vagas de trabalho: foi de patrulheiro a ajudante de serviços gerais. Hoje, admite, gosta de tudo em tudo o que faz.
Na geladeira
O dia pode arder do lado de fora, em pleno Verão de fevereiro, mas a temperatura só faz cair na Fazenda Terra Viva, em Santo Antonio de Posse, onde Reusa Souza Santos, de 24 anos, trabalha. Quando está a separar, secar, embalar e pesar tomates – o fruto da vez – sempre faz 20 graus. “É um ar-condicionado”, compara. Mas assim que chega a outra fase da função, a de etiquetar os produtos que estão no estoque, pode escrever: um Inverno ameno, entre 7 e 8 graus centígrados, é uma constante. Tanto que, além dela, outras três moças se revezam na atividade. “Ficamos dentro da câmara fria no máximo duas horas”, diz.
Por conta desse vaivém de um lugar para o outro, o desfile de modelos de Inverno também varia. O uniforme, que já inclui touca, luva, jaleco e sapatão na primeira temperatura, tem a adição de um blusão, de um outro tipo de luvas e também um sapato térmico na segunda lida. “Gosto de trabalhar aqui. A gente se acostuma e não sente frio”, garante.
Izolda Abreu de Almeida, de 26 anos, também trabalha numa câmara fria na mesma fazenda. Só o lugar é outro: na área do beneficiamento de flores de corte. A temperatura: 16,5 graus. Desde que entrou na empresa, há dois anos, sabia que trabalharia na “geladeira”. E está longe de reclamar: “É mais gostoso aqui que no Sol”, ressalta. Aliás, quando está muito calor, não vê a hora de voltar para dentro.
Como trabalha na divisa de Santo Antonio de Posse com Holambra, conhecida pela produção agrícola, Izolda diz que as pessoas vêem a sua atividade com absoluta normalidade, pois há muitas câmaras frias nesta região. Mas reconhece que bom mesmo é quando chega o Inverno. “É melhor ficar aqui dentro que lá fora. Fica mais quente.”
‘Diante de um milagre’
A olho nu, quase nada com o que Paulo Cesar Silva trabalha no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron pode ser visto. “A sensação é de estar diante de um milagre”, diz o técnico em laboratório especializado em física de materiais. E, claro, considera-se até um privilegiado pela oportunidade de atuar nesta área e assistir ao “que poucas pessoas conseguem ver”. Seu universo gira em torno de átomos, onde faz imagens, via microscópios eletrônicos, da nanoestrutura (um nanômetro é um milímetro divido por um milhão) de vários tipos de estruturas. “Ensino a preparar as amostras e a fazer as imagens delas”, explica o microscopista. Os dados são feitos e utilizados por pesquisadores universitários, em sua grande maioria.
Em razão dessa rotina, quase todos os dias registra coisas mínimas. No microscópio de varredura, por exemplo, que grosso modo faz a representação do número de elétrons refletido (medido ponto a ponto) na amostra, ele aponta como uma das imagens mais felizes os detalhes da asa de uma borboleta azul (Morpho aega). “Como gosto muito de pescar, tenho curiosidade em observar as escamas dos peixes. Talvez dê para montar algo interessante”, diz, sobre a provável nova experiência que pretende realizar.
Paulo Silva explica que o trabalho com as imagens, em geral, serve para entender o comportamento dos materiais. E explica: “Um usuário que quer estudar uma liga metálica de titânio/cobre usada em prótese dentária, ao adquirir uma imagem da nanoestrutura desta liga, pode prever o seu comportamento mecânico.”
Desde sempre apaixonado “por essa coisa quase invisível”, até em casa Silva costuma apreciar e mexer com miniaturas. “Quando faço um pandeiro ou um violino, é uma maneira de levar parte do meu trabalho para essas formas”. Além disso, também é músico. “Estas atividades fora da minha profissão, de uma certa maneira, me dão uma harmonia de vida”. Em outras palavras, “descobri que tocar pandeiro ajuda muito no meu trabalho”. E justifica: “Para tocar bem o instrumento é necessário coordenação motora e habilidade manual, justamente o que preciso na manipulação de estruturas muito pequenas e delicadas”, define.
Trilhos eternos
Na placa do bonde está escrito: “Pede-se não conversar com o motorneiro para evitar acidentes.” Os usuários geralmente respeitam a mensagem, mas sempre há alguém querendo saber o significado da palavra motorneiro, afinal, hoje são poucos os profissionais na atividade. O cearense de Mombaça, Francisco Batista da Silva, de 55 anos, devidamente a caráter, é um deles.
O curioso é que a primeira vez em que andou num trem tinha 23 anos e “já era casado”. Jamais imaginou que um dia seria motorneiro, até porque bem antes de 1990, quando assumiu a direção de um dos bondinhos do Parque Portugal, esse tipo de transporte já estava para lá de “aposentado” na cidade. Aprendeu a pilotá-lo no próprio Taquaral. Diz que bastaram dois finais de semana. “Depois, trabalhando, a gente foi aprendendo mais.”
Embora faça o mesmo itinerário três vezes a cada meia hora, quando o bonde funciona nos finais de semana, das 10 às 18 horas, reconhece: a atividade exige atenção redobrada, até porque muitos pedestres circulam pelos trilhos, sobretudo crianças e pessoas mais velhas. E, quando está chovendo, ainda há um agravante: a linha fica lisa. “Não fosse isso, dava para ficar de olho fechado”, brinca, tamanha a certeza do caminho.
De profissão, Batista da Silva é mecânico de máquinas pesadas, atividade que também exerce na garagem dos bondes. Ainda faz parte de sua rotina vistoriar os trilhos e trocar dormentes, mas adora o que faz.
Legenda nos dedos
No plenário da Câmara Municipal de Campinas, uma janela de vidro, semelhante à de uma sala de projeção de cinema, esconde duas mulheres de uma mesma família: as irmãs Audrey Andrade de Queiroz, de 28 anos, e Isla Andrade Pereira, de 24. Mas em vez de filmes, elas assistem regulamente às sessões ordinárias, às segundas e quartas-feiras, e algumas comissões do Legislativo, já que são responsáveis pela transmissão dos dados desses encontros para a televisão, via closed caption (legenda oculta), e por gerar também um relatório impresso das reuniões.
A primeira, com formação no magistério, é responsável pela revisão dos dados. A segunda, como a mãe – Jucinéia Joaquim de Andrade, que também trabalha com elas – é estenotipista, aquela figura que normalmente aparece em filmes sobre tribunal, digitando tudo o que é dito durante uma audiência. Aliás, como atuam para uma empresa terceirizada, vez por outra também se vêem neste mesmo tipo de cenário e até se assustam com o esquema de segurança armado em torno delas. “A gente passa uns apertos”, admite Audrey.
Não faz muito tempo, lembra, tiveram que cobrir uma audiência em Ribeirão Preto, onde seriam ouvidos presos ligados ao Primeiro Comando da Capital (PCC). E reconhecem: tiveram que ter bastante autocontrole. Apesar do sufoco, Isla conta que se concentra tanto no trabalho, que fica mais preocupada com as palavras do que com o assunto. “Muitas vezes, não sei nem o que eles falam.”
E nem tudo é risco. Isla costuma fazer o closed caption de alguns programas de tevê, como os da MTV , Record, Rede TV! e TVB, além de transmissões via internet de coletivas de empresas. Aos finais de semana, faz entradas em vários horários, como no Domingo Espetacular, da Record, a cada 15 dias. Resultado: apesar de trabalhar em casa, a rotina nesses dias é comandada pelos intervalos comerciais.
Isla tornou-se estenotipista cedo, aos 14 anos, influenciada pela atividade da mãe, até porque a máquina – que se assemelha, no formato, a uma de escrever –, sempre estava em casa e era uma espécie de diversão. Depois disso, ficou alguns anos afastada da função, até assumi-la para si, em 2004. “Fiz o curso, mas só trabalhei continuamente esses anos”, diz.
Um profissional da área leva, em média, quatro anos para ser formado, apesar de o curso ser rápido, de um ano, normalmente oferecido pela empresa contratante. Mas só a experiência é que dá a velocidade, aponta Isla. E para cada trabalho, há um tipo de profissional: até porque há que se conhecer o vocabulário específico de cada área – no caso delas, na Câmara, além dos termos técnicos, o nome dos vereadores etc. O estenotipista, em geral, cria seu próprio dicionário de códigos, o que facilita a vida na hora da digitação dos dados. “O treinamento é diário, que vai enriquecendo o dicionário com palavras novas”, conclui Isla.
Estenotipista: existem profissionais encarregados de digitar todas as sessões do legislativo e transmitir, via closed caption, para a televisão.